Re[capitu]lando

Cá estou, pós-livro Dom Casmurro e pós-microssérie Capitu. Ambos simultaneamente dilacerados por minha vã cogitação. Creio eu que a tão famosa, destacada e provável traição dessa moça de olhos de ressaca sobre nosso amigo Casmurro venha a se concretizar, ou não, dependendo do tamanho da malícia de cada par de olhos que os imaginam. Deixo uma releitura para o próximo ano. Talvez assim percebo alguma evolução vindoura em minha malícia, que até então é incapaz de julgar o tal adultério.

Se a minha escrita venha a ser modificada, nada mais é, devido à influência ainda fluente da narração acima citada.

Sessão privada

Logo cedo, enquanto ouvia o estalido amarelo da urina se jogando sobre a porcelana do vaso sanitário, ele enfim havia descoberto o momento mais propício para breves reflexões pós-noite ou pré-dia. Hoje, para iniciar essa nova habilidade, pensou em qual profundidade teria uma fossa para acumular excrementos suficientes de uma vida de cem anos. A causa dessa cogitação foi uma visão nunca vista de uma fossa às tampas retribuindo todo o arsenal de odores, tonalidades e consistências fecais. Uma orgia de estercos que nos torna tão iguais e homogêneos. E lá dentro de si, ele sabia que esse seria um justo presente oferecido pela Terra aos humanos. Ênfase nos humanos. Porque vale salientar a importância de queimar algumas fezes animais com o escopo de repelir insetos.
Quão bom seria se todos os seus problemas fossem como as fezes: um simples puxar de corda ou um aperto de botão os solucionassem. Talvez sejam, contudo a pressão da água nunca é suficiente.
Numa sincronia, sua mente descansa e sua bexiga esvazia. Logo a água é trocada e o vaso está de “braços” abertos novamente à espera de outra sessão privada.

O pardal

O pardal no poste
Enfeitando a cidade
Com seu tempo vago e sua malandragem.

O cidadão na rua
Sujando a cidade
Com seu tempo curto e sua vaidade.
“... é absurdo crer que a dor constante que nos aflige seja puro acaso. Pelo contrário. A desgraça é a regra, não a exceção. A quem culpar por nossa existência? À explosão solar que nos deu a vida? Eu me recuso já que não creio em Deus ou reencarnação. Se acreditasse, poderia me iludir de que a vida nos promete uma sobremesa divina, depois da indigesta refeição. Nunca fui capaz de aceitar a simples concepção de que tudo um dia vai melhorar. Nada irá melhorar. Melhor ou pior só será diferente. Não quero mais pensar, acima de tudo, não quero pensar.”


Carta de Dedo Torto à Therese no filme A Excêntrica Família de Antônia.

Ouvi dos dois

Quando trabalhava numa papelaria vivi uma surda situação. A cliente chega e me pergunta:
- Tem curativo?
- Não, você pode encontrar nesse supermercado aqui na esquina.
Depois que as costas dela me despedem eu ri rios até o momento que pensei: não seria corretivo?!
...
Hoje, essa habilidade débil-auditiva me proporcionou outra gafe reflexo-momentânea que dura, aproximadamente, até o momento em que meus neurônios fazem um pit-stop.
- Me dei bem com a heroína.
- A médica me receitou também, mas eu tô tomando outra.
Isso foi o que ouvi a caminho de casa entre uma senhora e um senhor da década de quarenta. Pergunto-me: tem alguma coisa rolando aí que eu não estou sabendo? E continuo me perguntando: não seria penicilina, insulina, amoxilina ou anfetamina? Posso ter ouvido mal. Rebobina.

O mundo ainda vive

Num início de tarde faltando exatamente um mês para a comemoração do nascimento mais manjado numa manjedoura, deparo com conversas alheias – como sempre acontecem. Uma senhora acompanhada de um senhor com seus aparentáveis 68 anos e provável esposo, conversa meio encolhida no orelhão com algum parente querido e distante. No momento de minha passagem por eles, só consegui roubar estas palavras:
- Eufrásio tá ansioso aqui do meu lado pra chegada de vocês. – disse ela enquanto ele se aproxima mais e diz:
- Não deixa pra chegar em cima da hora. Pede uns dias adiantados ao patrão e vem.
- Ô minha filha, a gente tá com saudades. Até mesmo dos netos que nunca vimos. O terreiro aqui é grande pra eles vadiarem o dia todo e esquecerem a correria que é aí. Deus me livre de um lugar desses! Edimar leu pra nós a carta que você escreveu. Ficamos tão felizes que lembrou o meu aniversário! – ela pausa pra ouvir a resposta enquanto me distancio até não poder ouvir mais nada.
Logo mais a frente olho para cima e vejo a esperança colorir o céu de verde.
Com a pena na mão os pensamentos são mais leves.
O bom das coisas sérias é o humor.

Aos poucos

Uma leve lembrança pousou na unha do meu polegar. Sabia que não era uma das minhas. Quando ia recordar essa lembrança alheia eu a soprei e percebi o quão longe se foi com um simples empurro aéreo. Talvez essa memória aeróbata fosse algum pensamento de uma mente cheia e pudesse ter saído de qualquer um dos buracos. Daqui, ainda posso vê-la pousada sobre o parapeito da janela. Tão concreta quanto leve. Movido contra minhas próprias vontades, esvaziei uma caixa de fósforo recém-comprada e a coloquei dentro antes que alguém pudesse lembrar. Era uma decisão difícil até o momento em que resolvi usá-la. No quarto, sentado na cama, janela fechada, abri a caixa de fósforo e senti a lembrança cair na minha mão direita como uma formiga. Estava imóvel. Aproximei minha mão do nariz e de olhos fechados a aspirei. Até hoje não consegui lembrá-la, mas volta e meia sempre vem algum momento inédito acompanhado de uma sensação vivida antes - alguns a chamam de “déjà vu”. Mas eu sei que cada sensação desta é um fragmento de uma memória alheia que te invade muitas vezes sem permissão.

Pau oco

Meu santo pranto
Para me desamparar
Fez pouco caso do meu casamento
Cedendo uma virgem e mais um tormento.

Minha santa infanta,
Nosso caso me descasou
Perdi mulher, casa e café
De bônus só me resta teu buraco e tua flor.

Enfadonho

Todo gozo é dado a quem faz o ato
Todo ato é fato quando visto de outro lado
Todo lado serve de reflexo para um espelho
Todo espelho está disposto a ocultar o caroço
E todo caroço só serve de adubo pro gozo.

O enfado é foda.

No Thing


Super Ju diz:
o q é q há cm vc?
Faz de conta que eu tô aqui. diz:
Nada "haver".
Super Ju diz:
então há nada?
Faz de conta que eu tô aqui. diz:
nada nada.

Vende-se

Vou me amar
Se quiser vem também
Até porque não sei por onde começar
Desde que comecei por você.

Vou me matar
Se quiser fique aí
Até porque sei onde tudo isso vai dar

Desde que comprei você.

Pra tudo um pouco

Domado por um sentimento mais que conhecido de tédio, ele foi dar uma volta pela cidade a dentro com apenas oito reais e um MP3 aos ouvidos transformando todo o mundo numa televisão muda naquela manhã - o que na verdade é, e não faço a mínima idéia de quem esteja com o controle. Percebeu uma movimentação maior de pessoas do que nos outros dias. Com isso, percebeu que hoje era sexta-feira: dia da semana em que o povo da zona rural vem à cidade fazer compras.
Na verdade ele estava à procura de uma chave-teste, daquelas que coloca no pólo positivo da tomada e acende a luz. Porém, onde procurou não encontrou. Voltando pelo mesmo caminho, agora sem fones e som porque a pilha tinha acabado, conseguia ouvir muito bem o que as pessoas estavam conversando. Como se seus volumes estivessem ao máximo. Elas estavam organizadas em pares, trios ou quartetos. E ele lá: só. Deu-se a atenção na conversa mais próxima e bem explicada de duas moças que iam à sua frente. E ouve entre elas:
- Tô vendendo bilhetes de rifa. Compra pra tu concorrer.
- Concorrer o quê?
- Um MP4. É um real cada bilhete. Já vendi quase a metade. Tá novinho!
- Agora não posso não. Deixa pra depois. Mas se eu souber quem quer eu te aviso.
- Tá certo, mas anda logo que tá acabando.
E assim seguiu as duas juntas sem mais uma palavra. Mudas. Apenas integrando o cenário que enfeitavam.
Depois que percebeu que o mundo não tinha mudado nada nesses últimos segundos ele sentia tanta falta de uma música.
Após uns oito ou nove metros de passos lentos avistou uma concentração desorganizada de gente ao redor de uma voz sotaqueada vinda de um microfone:
- Ó que beleza minha sinhora! Pega pra cê ver! Iss’é de qualidade! Coisa de primeiro mundo!
E ele aproximou. Não chegou muito perto. Dali mesmo dava pra ver uma cabeça com chapéu de couro indo pra lá e pra cá. E essa cabeça gritou:
- Você! (Não se preocupem não era nosso personagem.) Sim mocinha, vem cá!
Surpresa e roubando todos os olhares daquela gente ela foi.
- Vamo fazê uma mágica! Sigura estas duas pontas desse lenço e eu siguro as outras duas. Dêxa isticado! Agora vamo colocá divagá em cima dessa mesinha sem soltar ele. Quando eu dissé: levanta, cê levanta o lenço.
E foi o que fizeram. Sob aquele lenço marrom estava o anel daquela moça que nem eu e aposto que noventa por cento de quem tava ali sabia como foi parar lá. Depois de cinco segundos em silêncio, o povo aplaudiu. Mas o povo você sabe como é, né? Aplaudi mas sabendo que ali tem coisa. E a moça ficou perplexa com aquilo tudo. Pela fisionomia dela não parecia que era artimanha daquele humilde mágico. Digo humilde porque logo seguido os aplausos ele dava uma parada pra uma propaganda de um composto de mandacaru que ele mesmo vendia.
- Sabe aquela dor de cabeça, meu sinhô? E aquela dor nas costa, nos ombro, nas perna? E na hora boa o trem lá num sobe? Tudo isso acabô! Depois de tomar duas colher por dia de Elixir do Sertão, todos esses incômodo irão imbora. Ôpa! Aquela sinhora ali quer um. E o sinhô tamém? ... Tá aqui seu troco. Agradecido! - e qualquer um por ali grita:
- É quanto o remédio? – de imediato vem a resposta:
- Né remédio não amigo. Iss’ aqui é a resposta pro seus problema. Só custa oito reais, rapaiz.
Um grita lá, outro aqui. E vendido mesmo: sós dois elixires.
Nosso personagem principal, que já ia me esquecendo, deixou a multidão e seguiu pra casa. De certo, achava as mágicas um tanto boas, apesar de serem simples. Contudo, pra um pessoal que nem tem costume de circos e outras distrações além do trabalho, ficaram bem deslumbrados. Bem que ele poderia comprar um elixir daquele. Não que acreditava, mas pelo menos pra ajudar aquele vendedor na volta pra casa. E foi o que fez.
De troco, recebeu uma mágica: daquelas que o mágico tira uma moeda de sua orelha. Mesmo sendo uma moeda de cruzados, ele aceitou. Valeu à pena. E pensar que nem na TV tem uma propaganda tão interativa quanto essa! Por fim, ele foi pra casa acompanhado do Elixir do Sertão, que na verdade não serve pra outra coisa senão...

The last cookie of the package

acordei logo quando estava vivendo
e agora vou de encontro ao fim.
cena de Não Estou Lá

Vitamina C


"Sim, sim, sim, era isso. A mocidade tem que passar, ah é. Mas a mocidade é apenas ser de um certo modo, como, digamos, um animal. Não, não é somente ser assim como um animal, mas também ser como um daqueles brinquedinhos malenques(pequenos) que a gente videia(via) vender na rua, assim tchelovequezinhos(homenzinhos) de lata com uma mola dentro e uma borboleta do lado de fora e quando se dá corda, grr grr grr, ele ita(ia), assim andando, ó meus irmãos. Mas ele ita(ia) em linha reta e bate direto nas coisas, ploque ploque, e não pode evitar o que está fazendo. Ser jovem é como ser assim uma dessas maquininhas malenques(pequenas).
Meu filho, meu filho. Quando eu tivesse meu filho eu ia explicar tudo isso pra ele quando ele fosse estarre(velho) bastante assim pra entender. Mas aí eu sabia que ele não ia entender nada e ia fazer todas as véssiches(coisas) que eu tinha feito, talvez até matar alguma coitada duma forela(otária) estarre(velha) cercada de cotes e cótchecas(gatos e gatas) miando, e eu não ia ser capaz de realmente impedi−lo. E nem ele seria capaz de impedir o próprio filho dele, irmãos. E assim ia itar(indo) até o fim do mundo, rodando, rodando e rodando, assim como um bolche(enorme) tcheloveque(homem) gigantesco, assim o velho Bog(Deus) em Pessoa (por cortesia do Leite−bar(leite com drogas) Korova) girando e girando e girando uma laranja vonenta(fedorenta) e gréjine(suja) nos seus rúqueres(mãos) gigantescos."
Livro: Laranja Mecânica de Anthony Burgess

Código de barras


tome o tempo
cansei de pará-lo
se não souber usar
pergunte pro vento

agora eu vendo vidas
entrego em domicílio
divido em duas vezes
e ainda pago bebida

no próximo mês
chego do Além
levando asas
pra quem
não tem.



*o texto tem o formato de uma asa.

Papel paupérrimo


escassez de fibras
moléculas e partículas
tudo não passa de nada
e nada não passa de cada.

Depois

era de manhã cedo
e como todas as outras
sempre havia aquele cheiro


de medo.

só depois de tatear o chão
era que se certificara
que tudo tinha razão

em vão.

logo mais no fim do dia
sonhava que amanhã
tudo de novo viria

ou não.


Natureza-morta

Antes de o despertador dar um sinal de vida, os olhos já estavam abertos. Aproveitou os poucos minutos que restavam e virou para a esquerda. Como esses minutos eram preciosos. Era como se sua vida só desfolhasse após o sinal do despertador. Enquanto isso poderia se sentir morto. Enquanto isso poderia se sentir inexistente. Nem sonhava, nem vivia. Apenas estava. O mundo naquela hora não era dono dele, apesar dele fazer parte.
Aquele ensejo seria uma dádiva para poucos. E por ser tão exclusivo, era perfeito. Até o momento em que a malícia ainda não chegava com o sol ele lembrava que molhava a ponta do indicador com a língua para pegar os minúsculos cristais de açúcar derramados sobre a mesa matinal. Era doce como o instante em que nossos pais esperam o sono sobre sua larga cama para falar dos filhos, do crescimento desses e do orgulho oculto por esses mesmos. E para nos amar muito mais.
Dada a hora, levantou-se. Seguiu direto pra cozinha e sentou. Com seu cotovelo sobre a mesa apoiando o queixo percebeu que estava bordado o substantivo Segunda-feira no pano-de-prato. Mas não era Segunda. Como as outras tantas coisas que fazem com que sua casa o sufoque, aquele pano estava intato por muitos dias. Pelo menos pela ação do único habitante daquele lar.
Mais tarde, após ter feito as atividades costumeiras pegou a bolsa e seguiu pedalando pro trabalho. Aquela farda amarela e azul chama menos atenção do que ele achava. Pois a caminho da empresa só recebia o cumprimento de Dona Eva, viúva e à espera do leiteiro.
Dia de terça-feira. Dia de entregar correspondências porque assim acumula as de sexta, sábado e segunda. Pegou o pacote e foi pedalando cidade adentro distribuindo amores, brindes, cobranças, elogios, ofensas e palavras. Nem todo mundo o vê com importância, só ele mesmo. E tem orgulho disso. As pessoas só percebem a importância daquilo que o carteiro as entrega e não quem as entrega.
Ao chegar em casa, destranca a porta e quando o chaveiro bate no vidro o gato mia lá dentro aguardando seu almoço. O felino guia seu dono à cozinha e pára ao lado de sua tigela aguardando sua ração. No armário há um lugar só pra isso. Ele despeja um pouco da ração e guarda o resto. Só dá pra mais um dia. Vai pro sofá da sala e liga a TV. No mesmo instante em que aperta o botão ON a campainha toca. Já imagina quem seja. Ao abrir a porta:
-Oi. Aqui tá sua marmita. – disse o homem que entrega seu almoço.
-Ah, sim. Obrigado.
Passa pela sala e ignora a TV. Deixa-a ligada pra dar mais vida a casa. Põe a marmita na mesa e come.
Com a camisa de botões vinho aberta exibindo o peito, ele repousa na cama o sono da tarde e a casa vai se escondendo conforme a escuridão cresce.




William Gomes, 12/07/2008

Sacro


Diante do espelho da penteadeira ela via como o tempo a definhava bruscamente. Via nos ombros o peso de anos de educação com os filhos, o amor gasto e monótono do casamento e as pequenas unhas de anos de labuta.
Muda, ela ajeitava o grisalho crespo dos cabelos. Prendia-os com uma presilha dourada em forma de borboleta formando um coque. No pescoço, uma fragrância amadeirada.
Esticou um pouco o braço e puxando a alça da bolsa, levantou-se. Seguiu em direção a cozinha. Embaixo do pano bordado que estava sobre a geladeira estavam algumas moedas do troco das torradas. Não teria outro plano pra elas senão o dízimo.
18:47. Para uma missa que começará às sete e meia, saía àquela hora pra dar tempo achar um lugar pra sentar. Os jovens de hoje não nos respeitam mais.
Caminhando lentamente com a cabeça pra baixo seguia seu percurso. Quando se atinge certa idade, o cuidado com si mesmo dobra por qualquer besteira. E nesses pequenos passos chega ao seu destino.
Não tinha muita gente na igreja, somente pessoas com o mesmo propósito que o dela. Sentou-se. Dali tinha uma excelente visão do altar - bem de frente, nem muito longe nem muito perto.
Abriu a bolsa e tirou dali uma bíblia miúda e com páginas soltas. Quando se ganha um presente de uma pessoa importante devemos usá-lo até o fim. Folheava-a até encontrar os Salmos. Novamente, pôs a mão na bolsa e tirou um terço transparente para marcar a página dos Salmos. Fechou a bíblia, olhou pra trás e percebeu que a igreja se enchia pouco a pouco. Com o silêncio, os fiéis só ouviam o ruído devastador e antigo dos ventiladores rotatórios enquanto as mentes se calavam com as imagens curiosas e proféticas dos vitrais.
Aquele era o único momento em que a igreja se mantinha pura.




William Gomes, 12/04/2008

Vi Vendo


Cá sentado vejo tanta coisa:
É moça do vestido estampado,
É menino do relo* perdido
E o prego no solado gasto.

Cá andando eu vejo muito mais:
Eu vejo o que eu via sentado,
Vejo escondido e inválido
O ânimo do aposentado.

Agora eu deito e durmo
Pra não ver a vida passar
Sem que eu veja
Outro mundo.

*Relo: ...uma pipa enrosca uma na outra. Como a linha geralmente tem cerol, a linha mais fraca se corta e a pipa vai embora. O relo é na verdade essa disputa de ver qual pipa vai ou fica. No poema, o "relo perdido" cita que a pipa dele foi embora.

Matinal

Enquanto ele tomava o café com pão, a mãe estava junto a pia lavando a louça. Mesmo mastigando, ainda dava pra ouvir o roçar do Bombril no fundo da panela de pressão. E saí uma pergunta:
- O papai ainda dorme?
- Um hum...
Naquele instante começava a chover e os pingos pareciam sementes de uva caindo pesadamente nas telhas de cerâmica. As aranhas lá no alto estavam assustadas.
- Corre menino! Vá pegar as roupas que estão no varal, depressa!
E ele foi como sempre vai, sem nenhuma palavra. Por sorte, o café dormido não estava muito quente. Em meio minuto ele já vinha carregando sobre os ombros as roupas e um lençol. Mal via, porém sentia o cheiro carinhoso do amaciante. No quarto, jogou tudo em cima da cama. E naquele instante a chuva já havia engrossado, o café esfriado e a fome morta. Do quarto dava pra ouvir o barulho da panela batendo na pia de inox. Desse jeito papai levantará mais cedo do que de costume.
O menino sabia que não tinha graça alguma acordar cedo. A casa tornava triste, sonolenta e mal iluminada por causa da madrugada. Todavia, somente àquela hora podia ver a mãe lavando a louça mal-humorada e com pressa pra ir à feira. Não, ela não vai comprar. Ela vai vender. Com chuva ou sol, o trabalho feirante era sagrado. Não podia faltar nenhum dia que as verduras e as frutas poderiam apodrecer se não vendê-las. Sem contar também com o fiado que tinha pra receber.
Coitada. Àquela hora e já tinha tantos planos em mente. Bom seria a realização de pelo menos metade deles. Lembrou que tinha que passar no armarinho e comprar um zíper bege. Mas isso seria na volta.
Pronto! Lavou a louça, mas não enxugou. Deixou secar no escorredor.
Olhou pro relógio ao lado da porta.
- Vixe! Já faltam vinte pra seis.
Ajeitou tudo como de costume, só que mais rápido. Fez o sinal da cruz, abriu a porta e apressou o passo.
Lá vai ela descendo ladeira abaixo. Bolsa de lado e colar de miçangas no pescoço. Dobrou a esquina.
Só volta no anoitecer. Deve comer lá mesmo.
Assim, a rotina continua.

William Gomes, 14/03/08

Pela tela do PC.

E no msn...
ju diz:
ai, Will... esse negocio d ficar em casa sozinha no domingo... n dá certo
ju diz:
desculpa aí s eu falar qq bobagem p vc
ju diz:
hehe
william-gomez@hotmail.com diz:
nada que saia de sua boca é bobagem
william-gomez@hotmail.com diz:

e adoro quando me chama de Will
ju diz:
mas n vai ouvir da minha boca, vai ler dos meus dedos
ju diz:
hihi

Tá vendo como a tecnologia acaba com o romantismo de qualquer um. :)

Presente

11:45. Ele chega em casa e bate a porta. Corre pro quarto e abandona em cima do lençol listrado da cama a mochila de cor cinza e azul-marinho. Põe sua mão nanica dentro da mochila e pega um embrulho com estampa de peixes. Vai correndo pra sala. Senta no sofá ao lado da poltrona ocupada pelo pai lendo um jornal emprestado.
-Toma! – entregou rapidamente e desejou um feliz dia dos pais bem mecânico.
Ou ouvir a doce voz, o pai pôs o jornal sobre o colo e os óculos em cima da mesinha de mogno.
-Vem cá. Senta aqui. – segurou-o fortemente pondo-o em seu colo fazendo o barulho do amasso das folhas de jornal. Vamos abrir juntos pra ver o que é.
O laço verde-cana foi arrancado delicadamente pelo menino enquanto o pai foi tirando a fita adesiva com cuidado para não rasgar o papel. Esse que seria guardado por anos embaixo do colchão. E viu dentro do saco transparente, uma camisa branca com a foto de sua esposa e do menino num Natal frio e quieto. Embaixo da imagem estava escrito com uma fonte lilás, a manjada frase: Feliz Dia Dos Pais.
-Foi a única foto que eu achei.
-Não tem problema. Muito bonita. – deu um beijo no olho do guri e foi pro quarto.
O menino foi pro quintal pegar sua bermuda jeans e sua camisa vermelha que estava no varal. E seguindo pro seu quarto, viu que a porta do quarto do seu pai estava fechada. Parou diante dela. Pensou. E seguiu pro seu. Apoiou os cotovelos no parapeito da janela para ver o céu. Azul e vazio.

Ele não sabia que a mudez tomaria conta da casa nos próximos 365 dias.



William Gomes, 25/02/2008

Deus Triste - Carlos Drummond

Deus é triste.
Domingo descobri que Deus é triste

pela semana afora e além do tempo.
A solidão de Deus é incomparável.

Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.
A tristeza de Deus é como Deus: eterna.
Deus criou triste.

Outra fonte não tem a tristeza do homem.



Pra amenizar o paradeiro.