Herança

.
Maldito ócio juvenil. Por causa dele minhas ações e pensamentos são denominados senis. Loucos são eles. Que estão tão ávidos de prazer que mal querem sequer enxergar uma isca da realidade crua e insensível que só a razão deposita em si própria. Devido a certas atitudes desprovidas de um sentido que me recuso a aceitar, tive que tapar todas as janelas com pedaços de madeira para que as pedras lançadas contra mim e meus, silenciosos e confidentes, pertences. O que me dói é saber que esse meu escudo, também não passa de uma barreira contra a luz daí. Agora só tenho um filete de luz para me indicar o quanto a casa está empoeirada. O quanto aquelas minúsculas partículas de lembranças se agitam quando passo por perto. Aí está uma íntima dúvida fútil: essas pequenas partículas estão se livrando dessa casa ou são invasoras passivas fadadas a adentrar em qualquer cômodo onde haja pouca vida e mudança? Desconheço. Assim como esses macacos juvenis que agitam a rua com xingamentos que comprometem a minha sanidade mental. “Eu não sou louca.” Esse é o meu diálogo diário ante o espelho mal iluminado ao nascer do dia. Meu gato sabe disso. Meus cabelos também. São eles os confidentes mais fiéis. Por isso não posso cortá-los. A memória é um luxo que me empobrece diariamente. Uma vez feito, não saberia recontar aos novos fios tudo já dito. Vou levá-los comigo até meu túmulo. E nem minha morte poderá interromper nossa relação, já que depois de mim eles continuarão vivos. Eles serão a linha que me manterá entre os dois mundos. Ou melhor, os fios. Pelo menos por um tempo, até virem ao meu encontro. Vou me aturando enquanto isso. Alimentando-me com o que encontro pelas minhas andanças noturnas. Que é quando a rua inteira pertence a mim, e eu a ela. Sinto certamente que o dia tem inveja da noite por não ter os protagonistas que só nela aparecem. Sente só, apesar do Sol. É durante o dia que as prostitutas dormem e apagam seu fogo; que os guardas são meros pais e mocinhos, não mais heróis; que as virgens interpretam; que os cachorros de rua perdem sua sedução; que as cantadas são propostas falidas; e que as poetas, claro, são doidas varridas. Mas há tempos que não brota poesia de minhas entranhas. Há quem diga que é por falta de amor. Iludidos. Eu admito com a pretensão que posso que meus poemas não eram insossos por falta disso. Eles tinham a maturidade precoce dos suicídios. Meus poemas não chegaram a ser lidos, nem livros.
Até evito.
Eis um requisito.
Quando esquematizados em capítulos,
São preciosos cálices bebidos
Subitamente digeridos
Distraídos.
E por isso, deixo-os comigo. Assim, os dou a real grandeza que merecem. Agora, já é tarde. Nem a idade, ou a vaidade, nem se quer a criatividade me permite prosseguir. Eu sei que há um tanto a refletir. Mais um dia a descobrir. Isso é, se o que revelará sobre a cama ao amanhecer não for um corpo torto e amorfo. Ô desgosto, não queria morrer assim. Pretendia ao menos ser vista no fim. Queria ter a surpresa de saber qual seria minha última palavra. Minha última lembrança. Enfim, queria que alguém visse minha desintegração. O colchão se enchendo novamente, com um peso agora mais leve, o da alma. A coberta numa tentativa vã de reaquecer um cadáver constituído de histórias, agora, em decomposição. As histórias, ou lembranças, ou insucessos, decompostos, tendem-se a serem atraídos por outro corpo continuador. A fim de, à base da reciclagem, acontecer. É pouco corpo para tudo virar fato. Minto: é pouco é tempo. O espelho, seu fiel valete, está ali cara a cara representando a inconstância do desalinho de seu senhor. Ê bicho danado, esse tempo! Nem mesmo o vento conseguiu tocar em sua vestimenta de acontecimentos. Uma das poucas coisas que sempre pedi para mim mesma, é que eu morra enquanto estiver chovendo. Assim, irei com calma. [Mas para onde?] Assim eu sentirei cada tanto de mim sendo diluído com o ar, num desarranjo instantâneo. Haverá milhões de micropartículas pairando pela casa com o intuito duma despedida despropositada. Apenas despedir do que construiu um dia. Como sempre, cada vez que os primeiros pingos caem no telhado, como agora, eu me recuso a morrer. E com autocontrariedade, decido nascer! Pretendo ficar aqui até acabar o mundo. Quanto à loucura? Deixarei de herança à mercê daqueles que não se permitem imaginar.

Bordejo

hoje você esteve aqui, mudou tudo de lugar e acabamento
como um inquilo de uma casa abandonada

assumiu novas utilidades a velhos sentimentos

de um cômodo pequeno e oco fez seu porão de desejos

de uma vasta varanda sua biblioteca de segredos

quando libertos, se misturam na composição de bordejos.

No pé do morro

para mim não valem muito as estranhezas que há por detrás daqueles montes.
de que adianta descobrí-las sem eu poder trazê-las para minha morada.
não cabem nas estantes, armários e despensas onde guardo meus refúgios mentais.
e por falta de espaço, os amarro nos galhos turvos do umbuzeiro.
e me pergunto
se eles são de fato turvos, ou se cada fruto falso que ali deposito exaure uma fração de minha realidade.

Canibal

se tratando de ser
traga o próximo prato
um tanto maltemperado
de loucura e prazer
para me saciar
para misticizar
roer o osso dantes a digestão
de sobremesa, o coração.

Cômodo

a sala
sem ela sem janela
o canto
fixo nos ângulos
de fato
o teto que se sobra
só cobre o que há de molhar.

De noite

eu levei uma cantada
pouco mais do final do expediente
incrivelmente como pela madrugada
encontram-se tantos seres carentes
querendo acabar o dia com estilo
e sabe lá, se o que procuram
é de fato racional ou é por quilo.

Colapso

.
pelas tuas entranhas gustativas quero chegar ao seio cardíaco e dissipar-me em cada artéria chegando e invadindo a sua intimidade psíquica e translúcida. invado avidamente suas ilusões até preencher seus poros de uma pura fantasia tragicamente madura, e só então me permito dissolver em sua alma. feito uma matéria choca e queda permanecerei em ti à espera de outro ímpeto prazeroso para me regenar num desabrochar vivaz. não tenho culpa do corpo ter a característica atroz de se permitir corpos alheios para se completar. muito menos do descontrole orgíaco em que se libertam as ideias.

Madrugada

e estava ali
tão vadio feito um gato pardo
sob o silêncio das luzes dos postes
até se encontrar perdido entre tantos sonhos.

Aqui em si

como um animal absorto em sua fome comunal
tenciono suas áreas despidas de qualquer contato alheio
e sinto o ímpeto da curiosidade pulsar entre minhas partes íntimas
ínfimas são todas as ideias que brotam em mim à medida que te desnuo
e peço que se não forem realmente como as quero, que as mantêm recônditas em si.
então.

Cada casa é um caso

10:30 da manhã.

- Rosa.
- Bom dia.
- Tá boa?
- Eu não tô não. Não dormi direito esta noite.

Rosa é desempregada, assim como o marido, com uma complicação no Conselho Tutelar, tem uma escadinha de cinco filhos, bebe, e não sabia que usava água morna no preparo da gelatina. Por necessidade, ela está trabalhando pra minha mãe, que é madrinha da filha mais velha dela, Glícia, 12. Rosa cata o feijão, enquanto eu tomo o café.

- Então, Rosa. Por que não dormiu direito esta noite?
- Dívidas. Tô preocupada...
- Deus é pai.
- Ó pra cê ver, Dete trabalha e nem precisa, porque o marido dela ganha dois salários, ainda tem o dinheiro que ele recebe do dedo [pelo acidente de trabalho que o fez perder um ou dois dedos]; o filho dela ganha um salário também e uma filha dela recebe o Bolsa Estudante...

Dete lava roupa em casa às vezes, muito bem por sinal, tem uma escadinha de seis, e tudo isso que Rosa acabou de falar.

- ... O meu Bolsa Família foi cortado.
- Porque Glícia teve notas baixas e pouca frequência, num foi?
- Pouca frequência... foi. Será que posso voltar a receber?
- Sei não, no meio de tantos milhões de famílias, é complicado. Talvez se Glícia melhorar nas notas e frequência, pode ser.

Glícia é afilhada de minha mãe, está na primeira série, desinteressada, muito atrasada na escola, mal sabe ler, tem uma letra bonita, cabelo demasiadamente crespo, magra, fotogênica, excessivamente mentirosa, pra melhorar sua educação já morou com a tia, com a mãe, com a avó, passou uma semana em casa. Deve ter voltado pra mãe, ou pra tia. Tem 12 anos. Estuda em tempo integral pra diminuir as despesas em casa, ganhou uma presilha da minha irmã e a perdeu na escola no dia seguinte.

- Vou descadastrar Glícia do Bolsa Família.
- E o Bolsa Estudante, Rosa?
- Só recebe quem tem filho com dezesseis anos.
- E quando Glícia completar dezesseis tu recadastrará ela no Bolsa Família?
- ...

Bom, sei não, essas ajudas governamentais me deixam com um pé lá outro cá. Quantas dessas Bolsas são gastas indevidamente? Estimular o estudo com dinheiro? Assumir, ou não, os filhos por causa delas? Ter filhos para aumentar a chance de ganhá-las? Mas, quantas famílias vivem, ou melhor, sobrevivem por causa delas?
Não sei mais se devo concordar com Fernando Pessoa: “Sinto-me feliz por haver tanta coisa que eu não compreendo”.

Minimalismo

descia
por entre o silêncio escuro da sala de estar
enquanto tecia.

Mais que coisas

Não estão findas, pelo visto
As palavras do profeta sobre
como as coisas devem funcionar
Mas numa coisa persisto:
As coisas são mais que coisas
Sob os olhos que bem sabem enxergar.

Fim de semana

Missa, bar; visitas íntimas
São as tarefas de domingo
Dos que se deixam levar
E só acabam adiante
Quando o sono se dá.

Por toda semana que há de passar
Confesse que anseia pelo fim retornar
Pecados, mágoas e carências ajeitar
Até que acaba o domingo
Tudo teima em voltar

Agora sim, vamos sonhar.

Transbordar

Sentado na janela vejo a chuva entrar
Pelo telhado, furado, quebrado, culpado
A poça se espalha em cada lajota, tortas
Pelo rejunto se escorrem a transbordar

De pé na janela olho os móveis a molhar
N'água me olham com a alma a alagar
Foram-se encosto, assento e adjunto adnominal

Arrisco-me a saltar e despedir do temporal.

From here of within

look there!
ships flying in the black sky
so far away from my bed
shining between stars and comets
everything that remained of the day and still live.

LeiTVra


Pagão

Por toda a vida maçante que me causou
Resolvi mudar e decidi
Comer o pão que o diabo amassou
Só pra ficar melhor pra eu engolir

O goró ficou por conta da casa
Rodízio de carne sempre na brasa
Com tanta bia gelada fui me inebriar
As almas não têm do que reclamar
Voltei porque o inverno chegou por lá.

Clone


Deforma


Separado


Cair


A sombra


Ciclos


Soluço


O menino demente

Todo dia diferente é sempre igual àquela hora
Quando ele se debate, grita, morde e chora
A mãe injeta suas lágrimas e o remédio controlado
Agora ele volta a ser o menino que sonha acordado.

Em rabiscos repetitivos, vai desenhando seu mundo
A grade da janela, a mãe e seu desalento profundo
Amanhã ele se cansa e dá seu último sopro
Deixando a cama vazia, sem cor, sem corpo.

Areia

que derrama o tempo
numa estreita descida
ora grão, ora ar, ora vida

rastro de onda ida
se reforma no firmamento
numa simbiose líquida.

Prestidigitadora



e do metal
cru
desnudo
fez-se forma
cor e movimento
agia tão ágil agora
cortando brisa mundo afora
que logo mais nem se mexia
o vulto tornou-se sombra
um movimento atrasado que acabara de parar
não mais pairava pelos ares
congeladas pela tela onde só o pensamento ia
suas curvas sinuosas se apresentavam frias
como imagem
numa moldura
só lida.
Ingrid e William, em sua primeira cria.

O folder

Então. Não conseguia mais concentrar na leitura. Não pelo desconforto do sofá, mas pela fome que batia, e o cigarro já não mais o distraía também. Pôs o marcador de frente da página que estava lendo e fechou o livro. Seguiu para a cozinha enquanto sugava o resto de vida do seu cigarro. Jogou-o na sacola de lixo pendurada no canto da pia e pegou um prato e uma colher. O feijão havia sido esquentado há duas horas, e o arroz frio se mantinha no mesmo estado do almoço; de modo que, o primeiro aquecia o segundo num contato mútuo. No prato, o fundo estava coberto de feijão sob um médio monte de arroz. Tampou as panelas novamente, fazendo o vizinho que bebia água, ou fazia alguma coisa sem importância, escutá-lo. Rumava para o quarto segurando as abas do prato pela ponta dos dedos, para não melá-los. Sentou-se na beirada da poltrona porque estava cheia de sacolas plásticas e roupas usadas durante o dia, e ligou a TV mais por hábito do que interesse. Comia à vontade, a seu modo, a seu estilo, até as batidas da colher no prato ficarem mais constantes: sinal de que tinha acabado de acabar. Abandonando a TV falando merda sozinha, foi pôr o prato na pia. Jogou-o lá juntos com os outros de modo grosseiro, enquanto a colher deslizava pelo prato até quietar-se no fundo da pia. Pegou um copo que secava no escorredor de pratos e encheu-o de água da torneira, bebendo em grandes goladas. Agora, sentia uma vontade enorme de ir ao banheiro. Não pela água; pelo que comeu durante o dia. Ao chegar ao banheiro viu o suporte de papel higiênico apenas com aquele rolo, sem nenhum centímetro de papel. Merda! Caminhava pela casa a fim de encontrar algum papel que poderia suprir a falta que vivenciava àquele momento. Enganou-se ao achar que encontraria guardanapos na cozinha. Na sala, sobre a mesa, encontrou um folder dos Testemunhas de Jeová que dizia: Que Esperança Há Para Entes Queridos Falecidos? – não pensou duas vezes e levou-o ao banheiro consigo. Esvaziava-se aos poucos, sem pressa, sem se quer ler as passagens sagradas que logo mais sujaria. Por fim, limpou-se, vestiu-se e puxou a corda observando a água que selvagem e correntemente descia para a fossa. Ele sentou no canto do banheiro, ao lado da porta, para ouvir a água que vinha aos poucos se juntando na caixa plástica da descarga acalmando-o e fazendo apoiar a cabeça na parede. Dali, achou o banheiro tão alto, tão alto... Viu uma formiga descer desesperadamente e passar por cima de seus pés. Coitada, talvez viesse fugindo daquela aranha que se escondia entre as sujeiras da teia e do teto. O chão estrondou com o tapa que ele deu. A vida miúda daquela formiga acabara de diminuir ainda mais. Cansou-se daquele ambiente. A descarga já estava silenciosa e renovada. Levantou e se viu no espelho. Lavou as mãos com o sabonete azul que derretia sobre a pia e enxugou-as nas pernas da bermuda. Abandonou o banheiro ao apagar a luz. Se vir a calhar, os parentes daquela formiga poderiam entrar no balde de lixo e ler o folder sem se importar com a merda que há ali.

Fome

a comida na boca aberta descia
pelo bico que a mãe trazia
era determinada e altiva
queria a evolução rápida da cria

não, seu genitor o desconhecia
voar livre era o que ele queria
mas com essa cria... não podia
então, deixou sua família

pelo bico da mãe o filhote crescia
o olho iluminava sempre que o sol nascia
àquela hora, do ninho ele saía
corpinho frágil e trêmulo no chão espatifaria
se a cobra que o engoliu não estivesse ali, faminta.

Começo

parágrafo
para grafar o vácuo que sobra do pensamento
para pensá-lo

modelo
para moldar o modo de criar o quê
para fazer

preliminar
para eliminar a tensão e relaxar
para gozar

prólogo
para logo alongar o enredo
para lê-lo

lagarta
para largar a terra e o céu pintar
para alar

acender
para entender o que não sabia
paradiafonia

acordar
para nascer, crescer, reproduzir, morrer
para viver.

Fim

O vaso ao chão quebrado
Fragmentos de multissonhos
Agora jaz sem dono
Por todos os lados afiado

Ainda na mente intacto
Enquanto de vácuo se compor
Parado, de curvas formato
Oh, não era um vaso! Amor.

Do it!




Entreato

Após duas horas de seu almoço dominical, Edgar foi trabalhar no que de melhor ele sabia fazer: cortar árvores. Eliminava-as sem nenhum remorso, e sua idade avançada e a necessidade do dinheiro o ajudavam a sentir assim, sem uma folha de sentimentalidade ambiental. Dessa vez, era uma árvore que ficava fincada próxima à porta do cemitério, e assim atrapalhava a ampliação da entrada. A direção do cemitério resolveu aumentar a largura do portão, talvez para receber os futuros hóspedes mais confortavelmente, e aquela árvore não deveria estar ali. É uma majestosa árvore, de folhas compridas e cintilantes que há tempos vem testemunhando as lamúrias dos vivos e as confissões dos mortos. Edgar chegou meia hora mais cedo do combinado acompanhado de um facão e pulsando determinação nas veias. Começou trepando a folhosa parecendo um menino astuto, sedento por aquela goiaba lá no alto, e depois se acomodou entre certos galhos e começou a amputá-la violentamente sem dar ouvidos ao que ela lhe dizia. Rapidamente o chão estava coberto de galhos, braços, pernas e dedos, desenterrados. As almas acordaram por causa do barulho profundo do facão e ficaram observando, quase vivas, aquele momento que fazia do cemitério um teatro onde aquela peça é interpretada melhor do que os funerais a que estão entediadas de assistir. Se pudéssemos vê-las ali, ficaríamos encantados com o modo de se organizarem como platéia. Enquanto isso, Edgar conversava com o zelador do cemitério dizendo que já tinha derrubado uma mangueira naquela manhã, e consequentemente o dinheiro da cerveja já estava feito. O sol já lambia as convexidades peludas dos montes quando a entrada do cemitério se sentia nua pela ausência da árvore. Edgar vai-se caminhando, sem pressa. As almas aplaudem o fim do ato, e a carência regressa às suas fisionomias; agora só lhes restam deitar sobre suas camas ósseas e sonhar com lembranças futuras de uma nova vida. Enfim, anoitece e silencia.

Lepidóptero

Vejo que a claridade do quarto está piscando mais ligeiro do que minhas pálpebras. Não, a lâmpada não está defeituosa, é apenas uma mariposa do tamanho do meu polegar percorrendo repetidamente a sua órbita lumínica sem ter uma vaga noção do caos que provoca em mim com esses piscamentos. Daqui do sofá tento acompanhar as espirais que ela faz, dando liberdade à sua própria sombra ser o que quiser. São voos um tanto grotescos e toscos para um ser frágil. Num piscar de olhos, não mais de lâmpada, ela se exorbita e faz um pouso forçado sobre mim. Naturalmente, minha intenção naquele momento era dar um picotê na mariposa, mas contive há um palmo daquele olhar curioso e ingênuo: a única coisa dela que anda a par com a beleza. Encaro-a e sinto que tem algo a me dizer, mas antes que eu começasse a descobrir qualquer um de seus segredos, ela alçou um vôo que pareceu mais um salto por ter levado-a rapidamente ao chão. Mesmo assim ainda consigo vê-la imóvel, atenta e audaz no último degrau da subida da escada. Quem sabe fugiu não porque seus segredos tendiam a serem mostrados para mim; e sim, porque havia descoberto os meus antes e pode ter encontrado nada inocente neles. Se ao menos ela soubesse o que é ser humano, sabia que a maioria dos segredos é assim, exceto por aqueles que são descobertos na infância, deixando destarte, o título de segredos. Enquanto trocamos olhares, aspirações e sonhos, ouço passos rumorosos nos degraus. É minha irmã trazendo cream cracker coladas com margarina. Como não descobriu o ato inocentemente mortal que acabou de cometer, só lhe restava continuar andando rumo ao seu quarto deixando nas pegadas um finíssimo pó vindo do cadáver devaneador grudado pelas próprias vísceras em seu sapato. Continuei observando aquele rasto empoeirado até o vento que vinha da janela do quarto ao lado misturá-lo com a poeira frívola da casa.

Erupção

Para se expor ao sol
o osso força a carne frágil
como o magma impulsionado
pelo vulcânico orgasmo.

Súbito

Amputarei as pernas do tempo
Para que ele voe, voe
Por entre as dores
Irei passar como um passarinho
Bicando ressaibos no cimento
Do quintal da casa que ninguém está.

O chute

Quando o sol já lambia as curvas do horizonte numa transa em que o previsível fruto é a noite, eu estava com meus pensamentos libertos cogitando sobre uma diversidade de assuntos até ser interrompido pela conversa do dono do bar próximo de casa com o meu pai. O dono do bar coordena uma espécie de “bolão” em que as pessoas apostam, sem repetições, no placar do jogo de futebol do domingo. Hoje: Equador e Brasil. A aposta custa dois reais e o prêmio vinte reais. Sendo assim, meu pai decidiu participar apostando em 3 pro Brasil e 1 pro Equador. Com meu escasso conhecimento desse tema, sei que a probabilidade de sair muitos gols num só jogo é pequena. Por isso, dei um palpite que fez meu pai voltar atrás e concordar comigo: 1x1. Confesso que antes tinha optado por 2 pro Brasil e 1 pro Equador, mas alguém já tinha feito.
Com um instinto feminino de desafio e competição provocado pelo consenso entre eu e meu pai, minha mãe decidiu entrar no lance arriscando no zero a zero. Pronto! Com o preenchimento das lacunas de apostadores as apostas encerram, só resta acompanhar o jogo que começaria dali a cinco minutos. Nunca tive paciência pra assistir jogos, então falei pra meu pai acompanhar enquanto fui ler alguma coisa. Ele, assim como minha mãe, também não tem paciência, conseguiu ver só o primeiro tempo. Só se interessavam pelo resultado. Decidi acompanhar o segundo, sempre mudando de canal, e até ali nenhum gol havia feito. Adianto que não tenho patriotice só porque estava torcendo para ambos os times ao mesmo tempo, pelo menos até o primeiro gol ser feito. Do Brasil. Agora sim, certifico que realmente tenho patriotice interina, torço pro Equador fazer um gol. Um apenas, nada mais. Sem ânimo para acompanhar a bola no campo, espero o resultado vendo outro canal, de longe. Depois de algum tempo, volto ao jogo e percebo um 1 ao lado do “EQU”. Sim!, mais uma vez a bola entra na rede, que dessa vez é equatoriana. 1x1, senão fosse um pequeno esforço, o mesmo que 0x0. Durante os dez minutos finais não consigo mudar de canal e torço para mais nenhum time. Quando a bola aproxima da rede já fico tenso, fecho os punhos e... ufa!, fora. Essa tensão se repete umas três vezes mais até o game over. Mais tarde, o dono do bar trouxe o prêmio. Ganhei!
Sem mais procrastinações, eu acho que a sorte é de todos, mas o caminho é um só. Pareceu até provérbio bíblico. Pra mim, a sorte está pra todo mundo diariamente, só precisamos fazer as escolhas certas durante o dia; há apenas uma sequência, que muda todo dia, todo o dia.


Vide o filme Corra, Lola, Corra.

Filantropia

Numa agência bancária não há nada que mantenha sua visão atenta por muito tempo. Consequentemente, só me resta ouvir a dialética que se manifestava entre um casal situado a dois indivíduos à minha frente. Ele começa com um suspiro:
- Esta fila parece que anda pra trás.
- Logo hoje que estou com pressa. – ela o responde confirmando que a insatisfação é mesmo contagiante. Sobretudo, em fila.
- Faz muito tempo que aquela mulher está no caixa 3.
- As pessoas deixam pra resolver as coisas tudo de uma só vez.
- Adido a isso, ainda temos de submeter ao moroso atendimento desses funcionários.
- Só são ágeis quando o horário de serviço chega ao fim.
- Eles são como os funcionários públicos: ganham bem por pouco trabalho.
- Não há mesmo explicação para aquelas fisionomias hostis.
- Aquiesço, até porque nem tudo tem explicação. Lembra do desaparecimento da filha do nosso vizinho? Ainda não sabemos o motivo, mas sei que ele não anda muito preocupado. Pudera, quase todo dia o vejo naqueles bares. Chega em casa só de madrugada. Nem se preocupa em providenciar um emprego.
- E tem a vizinha da frente que não cansa de receber cobradores à sua porta. Só ontem vi três de diferentes empresas. A meu ver, tem uma vida de conforto pelas compras mensais que faz. O desconforto fica por conta dos cobradores mesmo. E ainda, seus filhos não trabalham nem se preocupam com o futuro.
Após vinte minutos, toda a rua já havia sido asfaltada por comentários desprezíveis como esses. Por que ser figurante no drama alheio do que protagonista da própria comédia?
-Sua vez, senhora.
-Ah, nem vi que o tempo passou depressa.Realmente, talvez porque não tinha reparado que seu relógio parou antes de colocá-lo no pulso enquanto notava a vizinhança e suas particularidades.

Telebeatice

Mamãe não tem carro, e por esse motivo eu estava sentado na porta de casa esperando tia Getúlia me buscar com seu carro. Antes de a família tornar o que é, era como um ritual ir à casa de minha avó aos domingos. Após alguns segundos de contemplação àquele céu vivo e pesado de domingo, o carro dela surge na esquina. Eu me levanto e a espero junto da calçada. Sua mãe não vai? , ela me pergunta; Não, ela vai outro dia, respondi entrando no carro. Na verdade, minha mãe não gosta de ir lá quando há muita gente, até porque o propósito dela é ver minha avó mesmo. O carro não caberia mais ninguém porque o carro de tia Getúlia cabe comodamente e propositalmente sua família. Chegando à casa de vó, já percebo a quantidade de pessoas que estão lá pela intensidade das vozes que estão falando e se cortando na cozinha. E aquele dia a balbúrdia era demais. Quando cheguei na sala de estar, e por estranheza não havia ninguém, notei o copo de água que estava em cima da TV, a única coisa que fazia ruído ali. Bebi e coloquei o copo no mesmo lugar. Desci pra cozinha ao encontro da algazarra e também pra pedir a bênção dos parentes. Bênção que só vim a entender seu significado, quando por vontade própria me recusei a querê-la. Depois de minha apresentação, fui pro terreiro na frente da casa me juntar aos primos. Enquanto brincávamos, ouvi minha tia exasperada perguntando a todos quem tinha bebido a água que minha avó tinha colocado pro padre de algum programa católico benzer. O programa começaria dali a uns 15 minutos. Imaginem o tamanho da tragédia que se constituiu na mente de um infante de 8 anos. Não podia confessar o crime, fraco como eu estava, longe de minha mãe. Tive uma idéia, não das melhores. Logo em seguida, quando todo mundo foi almoçar, deixando a sala vazia, peguei o copo de vidro todo embaçado das indignações de minha tia e o enchi na pia do banheiro. Coloquei-o no mesmo lugar, no instante da abertura do programa. Pronto, o terreiro era meu novamente e eu retornei a ser um humano – com o coração um pouco mais acelerado que o normal. Ao me deitar na grama, com a consciência mais verde do que ela, minha avó me chamou pra almoçar. Segui pra cozinha deixando-a na sala com seu programa. “Agora, meus irmãos, vamos erguer este copo de água e pedir ao Pai que atenda a todas as nossas preces e que faça com que essa água purifique-nos de todos os males. Amém. Bebamos.” Apressei meus passos. Só quando cheguei em casa no fim da tarde, morto de sede, foi que bebi água lentamente sem nenhuma molécula de preocupação ou heresia. Até hoje sinto um gosto estranho nas águas bentas, sobretudo as bentas por telepatia.
Um país se faz com homens e livros.
Edite, funcionária da biblioteca municipal.

Semear

A flor cheirosa dela
Oca, enforca a vara
Da manivela
Que dispara.

A flor amorfa dela
De sêmente é regada
Abrindo-se à noite
De dia mijada.

Minha ex
Extinguiu léguas, anos e luz até aqui
Expandindo minhas crenças e ilusões
Extasiou-me com suas técnicas orgásticas
Explicou-me sobre os discos e distorções.


Minha ex
Exatamente no cerne da felicidade
Expressou uma triste nostalgia
Excitada por suas velhas memórias
Excetuou-se de minha órbita e carícias

Minha ex
Minha extraterrestre.

In him

Posto sobre o teto
Tinha um sol
Posto sobre um teto
Ora azul, ora fundo
Profundamente sãs
As idéias são presas
Dentro da cuia vitral
De distração canta
Um Redentor ao relento
Um samba sacana.

A naftalina e o café

Era uma sexta de Janeiro. No instante da troca da tarde com a noite, vejo a cara lamentavelmente exausta da moça do caixa do supermercado. Entro na locadora de DVDs e sigo diretamente pra minha seção favorita. Quando os olhos apresentam à mente as capas dos filmes já vistos, e também dos ignorados, abruptamente inalo um forte cheiro de naftalina. Com isso, todas as capas tornaram iguais. Ao olhar para trás vi um corpo magro de cabelos torturantemente presos num palito de madeira enfeitando um vestido estampado com quadrados de várias cores e tamanhos. Esse cheiro me fez imaginá-la no seu quarto, abrindo a última gaveta do guarda-roupa marfim vestida apenas com um sutiã e uma calcinha, ambos cor de pele. Sorte aquele vestido estar acima de todas as peças. Isso a fez escolhê-lo sem pensar muito, ou quase nada. De tão jovem, não imagino que ela própria tenha colocado as naftalinas lá na gaveta. Isso é coisa de empregada asseada e bem-paga. Provavelmente sua casa era limpa e arrumada. Só não entendo uma coisa: o que toda aquela magnificência estava fazendo na seção de filmes de Ação? Ela era antagônica a todas aquelas capas com explosões, carros, chineses e/ou japoneses em posição de combate, títulos com cores chamativas e fontes grandes, típico dos filmes de ação. Ela que tanto parecia com aquelas personagens de filmes dramáticos, românticos, que nada mais são do que sonhos e fetiches de seus autores. Ela que transmitia tanta calma e mistério ao espectador.
-Eu quero esses três! – era uma menininha autoritariamente infante que apareceu junto dela. – Já escolhi.
-Mas esse aqui você já viu várias vezes. – a nossa mocinha responde.
-Quero ver mesmo assim!
-Tá bom. Vamos.
Elas duas seguem pro balcão pra receber os filmes.
-Não precisa de sacola. Obrigada.
Ela sai da locadora e se vai.
Talvez ela fosse mais uma moça à procura de uma vida mais agitada, com sequências mirabolantes e fatos inusitados e estivesse cansada de todos aqueles amores utópicos. Ela não podia mais esperar, seu fervor estaria a um triz da explosão e a mudaria radicalmente. Como aquele dia era sexta-feira e ela tinha locado três filmes, plausivelmente os devolveria na segunda.
...
Era uma segunda de Janeiro. No instante da troca da tarde com a noite, vejo a cara dissimuladamente feliz da moça do caixa do supermercado. Entro na locadora de DVDs e sigo diretamente pra minha seção favorita. Quando os olhos apresentam à mente as capas dos filmes já vistos, e também dos ignorados, abruptamente inalo um forte cheiro de rispidez com café. Ao olhar para trás vi um corpo gordo de cabelos tristemente grisalhos e presos em vários grampos enfeitando um vestido de cores mortas. Essa mulher foi devolver três filmes infantis. Possivelmente, essa era a mãe da nossa protagonista. Ela tinha um aspecto ranzinza, daquelas que faz questão de manter os costumes severos e ultrapassados de seus antepassados. Daí surge a causa do possível retraimento da nossa jovem.
A velha sai sem retribuir o agradecimento e vai.
Fico esperançoso ao imaginar o dia em que a nossa moça desabroche e goze com todas as suas vontades, grandiosas e íntimas. E assim, possa ter a coragem de locar um filme de ação pra saber que a vida é muito mais que aquilo.

Goteira

o tempo mantinha os suspiros fúnebres sob suas vestes:
as capas de chuva de pontas e pulsos;
e os libertavam em quedas morosas sobre as casas
que silenciam nos fins de tarde dominicais
ao mesmo tempo em que:
a diversão acaba com o banho
o velho deixa o banco só na varanda
a mãe engoma a farda do filho
e a alegria dorme
e descansa.

Contagem progressiva

3, 2, 1, pronto! Agora é a vez de pararmos de ser medíocres com nós mesmos.
Como foi difícil ter de responder àqueles Felizes acompanhados daquela velha obrigação educativa. Com isso, incumbiu a mim e a outros de retribuírem toda essa cerimônia com o mesmo grau de hipocrisia – às vezes até com um pouco a mais – apenas para não sermos as ovelhas-negras de um velho pasto “casto”.