“... é absurdo crer que a dor constante que nos aflige seja puro acaso. Pelo contrário. A desgraça é a regra, não a exceção. A quem culpar por nossa existência? À explosão solar que nos deu a vida? Eu me recuso já que não creio em Deus ou reencarnação. Se acreditasse, poderia me iludir de que a vida nos promete uma sobremesa divina, depois da indigesta refeição. Nunca fui capaz de aceitar a simples concepção de que tudo um dia vai melhorar. Nada irá melhorar. Melhor ou pior só será diferente. Não quero mais pensar, acima de tudo, não quero pensar.”


Carta de Dedo Torto à Therese no filme A Excêntrica Família de Antônia.

Ouvi dos dois

Quando trabalhava numa papelaria vivi uma surda situação. A cliente chega e me pergunta:
- Tem curativo?
- Não, você pode encontrar nesse supermercado aqui na esquina.
Depois que as costas dela me despedem eu ri rios até o momento que pensei: não seria corretivo?!
...
Hoje, essa habilidade débil-auditiva me proporcionou outra gafe reflexo-momentânea que dura, aproximadamente, até o momento em que meus neurônios fazem um pit-stop.
- Me dei bem com a heroína.
- A médica me receitou também, mas eu tô tomando outra.
Isso foi o que ouvi a caminho de casa entre uma senhora e um senhor da década de quarenta. Pergunto-me: tem alguma coisa rolando aí que eu não estou sabendo? E continuo me perguntando: não seria penicilina, insulina, amoxilina ou anfetamina? Posso ter ouvido mal. Rebobina.

O mundo ainda vive

Num início de tarde faltando exatamente um mês para a comemoração do nascimento mais manjado numa manjedoura, deparo com conversas alheias – como sempre acontecem. Uma senhora acompanhada de um senhor com seus aparentáveis 68 anos e provável esposo, conversa meio encolhida no orelhão com algum parente querido e distante. No momento de minha passagem por eles, só consegui roubar estas palavras:
- Eufrásio tá ansioso aqui do meu lado pra chegada de vocês. – disse ela enquanto ele se aproxima mais e diz:
- Não deixa pra chegar em cima da hora. Pede uns dias adiantados ao patrão e vem.
- Ô minha filha, a gente tá com saudades. Até mesmo dos netos que nunca vimos. O terreiro aqui é grande pra eles vadiarem o dia todo e esquecerem a correria que é aí. Deus me livre de um lugar desses! Edimar leu pra nós a carta que você escreveu. Ficamos tão felizes que lembrou o meu aniversário! – ela pausa pra ouvir a resposta enquanto me distancio até não poder ouvir mais nada.
Logo mais a frente olho para cima e vejo a esperança colorir o céu de verde.
Com a pena na mão os pensamentos são mais leves.
O bom das coisas sérias é o humor.

Aos poucos

Uma leve lembrança pousou na unha do meu polegar. Sabia que não era uma das minhas. Quando ia recordar essa lembrança alheia eu a soprei e percebi o quão longe se foi com um simples empurro aéreo. Talvez essa memória aeróbata fosse algum pensamento de uma mente cheia e pudesse ter saído de qualquer um dos buracos. Daqui, ainda posso vê-la pousada sobre o parapeito da janela. Tão concreta quanto leve. Movido contra minhas próprias vontades, esvaziei uma caixa de fósforo recém-comprada e a coloquei dentro antes que alguém pudesse lembrar. Era uma decisão difícil até o momento em que resolvi usá-la. No quarto, sentado na cama, janela fechada, abri a caixa de fósforo e senti a lembrança cair na minha mão direita como uma formiga. Estava imóvel. Aproximei minha mão do nariz e de olhos fechados a aspirei. Até hoje não consegui lembrá-la, mas volta e meia sempre vem algum momento inédito acompanhado de uma sensação vivida antes - alguns a chamam de “déjà vu”. Mas eu sei que cada sensação desta é um fragmento de uma memória alheia que te invade muitas vezes sem permissão.

Pau oco

Meu santo pranto
Para me desamparar
Fez pouco caso do meu casamento
Cedendo uma virgem e mais um tormento.

Minha santa infanta,
Nosso caso me descasou
Perdi mulher, casa e café
De bônus só me resta teu buraco e tua flor.

Enfadonho

Todo gozo é dado a quem faz o ato
Todo ato é fato quando visto de outro lado
Todo lado serve de reflexo para um espelho
Todo espelho está disposto a ocultar o caroço
E todo caroço só serve de adubo pro gozo.

O enfado é foda.

No Thing


Super Ju diz:
o q é q há cm vc?
Faz de conta que eu tô aqui. diz:
Nada "haver".
Super Ju diz:
então há nada?
Faz de conta que eu tô aqui. diz:
nada nada.