Um corpo que dorme

a meia-luz ilumina os contornos absolutos dos obstáculos de músculos da tez estática. a respiração se disfarça num grito mudo de vida a se esbarrar pelas narinas. a face interpreta com sua vulnerabilidade exposta o íntimo ser, dos sonhos que não passam de atuações sinceras de prosopopéias alheias. enquanto dorme, o corpo se mantém em sua mais intensa insipiência, tal qual um feto no silêncio materno e mundano. o sono é a imobilidade da matéria diante do fluxo contínuo do universo abstrato.

Etiqueta

meu bem, não me diga o que fazer
um desejo ignorado é um eterno sofrer
eu quero bater nas costas do mundo
cara-a-cara num desgosto profundo
reparo nas putas e travestis num estilo casual
jogando no bicho nas entranhas do banco central
vou sair, por aí,
cumprimentar os mendigos com ar de marginal
cuspindo o tempo sobre os meios-fios da avenida
lixo de butique são duplicatas vencidas
assassinadas com a moral falida
hey burguesia!
a gente se vê na fila do caixa eletrônico
vestidos de ladrão num terno monocrômico.

Psicastenia

A TV estava coberta com um lençol de solteiro estampado. O cão estava mudo e estático, coagulado como os demais móveis cobertos. A chuva sempre incauta, indiferente à fragilidade das moradas. Se rejeitarmos as andanças do ponteiro e as gotas se deformando no telhado, perceberíamos que todo aquele silêncio que pairava no ar trazia consigo uma dose de respeito. Talvez desconfiança.
- Lúcia. Tô indo levar a janta de seu pai no trabalho dele. Não demoro.
A porta bateu e a menina continuava olhando para a parafina da vela que liquefazia antes de beijar a porcelana fria do pires. Estava com sede. Na escuridão, a cozinha parecia enorme e tão longe. Sua sombra na parede também: enorme. Disforme. Ela evitava qualquer movimento, mínimo que fosse, para que a sombra obedecesse, imitando-a. Não tinha jeito, a chama da vela estava viva e agitada demais, tentado se desvencilhar do pavio. Para isso, sua chama tentaria ficar imóvel o máximo que podia para queimar-se mais depressa e se libertar, como nós, espiritualmente. Lúcia percebeu que uma corrente de ar pirraçava a chama de momento em momento. Ela viu uma boca tão carnuda e vermelha tão cintilante que parecia mais sangue do que batom.
- Você está com sede. Por que não vai até a cozinha?
Aquela voz tinha um tom provocativo. Pronunciava as palavras pausadamente, mexendo os lábios de um modo exagerado.
Lúcia era muda. Nunca se sentiu tão desprotegida. Encolheu-se o máximo que pôde no sofá. Seu joelho apertava o peito intensamente.
- Vou buscar água pra você, menininha. Quem sabe você acalma e pára de se tremer.
A chama agitou tanto que quase apagou. Nesse momento, a menina viu dois olhos amarelos tão grandes, que pareciam saltar das pálpebras escuras. A chama se acalmou. Lúcia queria correr até a porta da frente, mas não sentia suas pernas. Aflita, ela ouviu os passos se aproximando lentamente. A menina desmaiou ao sentir a voz tão próxima de seu ouvido.
- Lúcia, voltei.

Depois daqui de novo

no bebedouro seco estava um pássaro
tão úmido como o último orvalho
seu peito arfava em modo abiótico
olhava o espantalho além dos galhos
vivendo aquele sonho trajetório
o corpo abandonado pelo espírito
espiritualmente tão lunático
materializava tão perdido
na dimensão do incompreendido
sem bico, descaracterizado
será humano ou bicho recém-nascido?
a dúvida que antecede o ócio
no mundo onde o inesperado é óbvio.

Inovo

Ser uma palavra

és um escravo do jogo lexical
a tudo ao redor foi-se denominado
das entranhas noturnas do beco sensual
transporta a mente materialmente para a mansão do alienado
a virgem metamorfoseia numa puta livre de qualquer intenção financeira
assassinato e desamor a quem não te cabe nem convém
vira-latas se entendem numa particular sexual maneira
agora tenta no mais fundo abstracionismo descobrir a proposta de ser
então encontra o abismo existencial e intitula-se de tudo: nada.