Três

um par me chamou de nós
a sós eu disse sim
e quando um repete a vez
dois pares é igual a três.

Um menino azul

há um menino azul embaixo da terra.
vestido de roupa de despedida.
de despedir do mundo.
pela cor, não dá pra saber se é rico ou pobre.
se a alma não já tivesse ido, saberíamos se era nobre.
mas antes disso,
para onde queria ir?
antes de chegar ali.
há um menino azul embaixo da terra.
com o tempo irá explodir
e sumir.

Lavinesu

quando eu amo pelos cantos
quando canto teu encanto
tudo é lindo quando muito
quando juntos começamos

caso por acaso
nossos feitos serem fatos
a noite nos esperará
pelo que seremos
para o que façamos.
William Gomes e Brenda Luara, 22/11/2011

Suor

portanto, foi-se tão tristonha
o peito ribombando lágrimas antigas
e sua camiseta encharcava cada fibra
uma coisa inesquecivelmente estranha.

Monkey junkie

The monkey, monkey junkie
It's my friend
Worry no more
Because this is not end.

Remeta

esteja pronta e me inclua
ao ponto de sua carne crua
matar a fome de estar nua
no ápice do meu firme
ainda que afirme
que seu medo
seja o meu
e meio.

Mudo

meu poema se refez num transtorno
feito o silêncio grave de um soluço
vomitando o ar do absoluto

meu poema não se forma nem evolui
só deforma a escrita que não flui
minha carência agora é de ser tudo.

Um parágrafo hermético


Enquanto ela abria a porta, o chaveiro batia no vidro avisando sua chegada.

Todos os espíritos que viviam ali se escondiam atrás do sofá da sala. Exceto a menininha distraída que estava ajoelhada vendo sua foto no porta-retrato em cima da mesinha de centro. Ela tentava se lembrar daquele dia, seu aniversário. Encontrar qualquer ligação que pudesse se conectar àquele momento. Mas é que fazia tanto tempo, que ela nem conseguiu reconhecer ninguém. Um vazio batia no seu peito como um soluço mudo, ou uma fumaça. Nunca tinha encontrado nenhum registro vivo que ainda a pudesse manter viva. Nem cartas, documentos, certidões, contas, desenhos, uma nódoa num vestido. Nada. E sabia que não se pode confiar nas lembranças das pessoas. Agora ela resolve fazer sua própria história.

A menina da fotografia acaba de entrar na sala. Um pouco diferente por causa do tempo.

Bicho

inventei um novo bicho
com materiais do lixo
consumido pelos ricos
era quase um indivíduo
mas seu caráter destrutivo
fez do meu tempo desperdício.

Negro

a pele cor de noite
tatuada de açoite
grito forte preso
e calado

o belo crespo do cabelo
teus olhos são um apelo
sempre lembrará
do passado

a cultura invadida
tua língua extrovertida
nunca será só
um vocábulo.

Não solte balões. Solte animais.

Santo

amanheço frio e fresco
como um jesus de gesso
no ateliê daquele mesmo
devoto que esteve enfermo

tinta fresca da minha cabeça
uma matéria que começa
na razão que me desconheça
fé mais que mentira é essa

uma graça alcançada
uma desgraçada perdida
se pelo menos fosse puro
o sangue das minhas feridas.

me tirem desse altar
que o peso de pecar
é menor que um corpo oco
sem uma gota de saliva.

Tela

quero uma fronha de carbono
que decalque aquele sonho
com a mesma precisão

pode ser em preto-e-branco
uma estampa se criando
meu souvenir de ilusão

definida arte contemporânea
mesmo que talvez visonha
não mereça uma exposição

pelo menos me compreenda
como poeta peço licença
para mudar de expressão.

Cadáver

O cio

Orquídeas

O que ele tinha dito era grave demais para não se incomodar assim que fechasse a porta. Olhou-a mais uma vez e antes que ela se levantasse arremessou a estátua nua e opaca sobre sua face. Eram dois corpos espatifados se confundindo sobre o carpete amarelo-giz que se coloria rapidamente. Esperou um dos corpos parar de se debater loucamente para então sentar e captar o silêncio que anunciava a presença da morte. Imediatamente percebeu que a vagina da estátua havia parado rente ao seu pé direito e apanhou-a depressa antes que sumisse de vista. Ao guardá-la no bolso da frente da calça viu no relógio que já passava das 18:00. Caminhou até o quintal para molhar as orquídeas com a água que sobrava do regador. O serviço foi interrompido instantaneamente ao deparar-se com aquelas azuis. Levou-as até a sala substituindo as vermelhas que já estavam no vaso e que davam ao ambiente um ar de vulgaridade. Havia muito vermelho ali. Admirou-se ao perceber o contraste que o azul fazia. Estava feito. Embrulhou as flores vermelhas e foi-se embora com elas. Já era noite.
Parou num bar para tomar um suco. Havia uma mulher ao lado da cadeira vazia que estava entre eles. “E essas flores?” “O que tem?” “Fruto de algum encontro não acontecido?” “Não. Talvez de algum futuro encontro investido.” “Não é de costume homem andar com flores por aí.” “Nem de mulheres seguirem homens por aí.” Ele colocou o dinheiro sobre o balcão e saiu pela rua sem olhar para trás. Ela também veio. Não era do tipo que aceitasse que uma conversa terminasse sem a última fala ser sua. “Tem cigarro?” Gesticulava com os dedos esticados tocando nos lábios. “Não fumo.” “E ocupa seu tempo ocioso com o quê?” “Captando o silêncio.” Uma fumaça de ironia desenhava espirais no ar. Ela acendia um cigarro que havia encontrado na bolsa. “Então me mostre o que o seu silêncio tem de tão interessante. Porque eles costumam ser todos iguais.” Continuavam andando, ela fumando o silêncio e a última fala havia sido dela. Estava tudo certo.
O chaveiro roçava na porta de vidro provocando uns ruídos imperceptíveis. Ele acendeu a luz. Os olhos dela percorriam o estranho cômodo ao passo que deixava cair sua bolsa sobre o sofá. Ela parou diante da parede vazia e entendeu o quanto ela desejava um quadro em si. O silêncio sensibiliza os sentidos. Então, naquele momento, ele se viu arrebatado por uma inspiração nefasta e a derrubou sobre o carpete imobilizando-a completamente. Penetrava-a calmamente para amaciar os músculos. Ela se estremecia impossibilitada de produzir qualquer ruído. Agora os sentidos perderam sua sensibilidade e se mantinham cúmplices e atentos. Ele aproximou o canivete de sua vagina e começava a cortar sua pele no formato exato para encaixar a vagina de mármore que estava em seu bolso. Pressionava a peça fatalmente contra o corpo, mas o sangue impedia que se fixasse.
Não adiantava: uma arte nunca deve ser forçada.
...
- Quanto você vai tirar do cabelo?
- 2 dedos e 2 falanges.
...
- Meu queixo é muito grande, gente.
- Se eu fosse você eu não queixava.

Olhos abertos

Havia uma dedicatória que precisava ser invadida por mim naquela noite. E fui à sua procura sem saber de sua existência. Um chamado. Um achado. Um desabafo grafado nas primeiras páginas em branco de 'Glauber Rocha: Cartas ao Mundo'. Nenhuma das outras 794 páginas me seduziram tanto quanto aquela dedicatória. Além de invasivo, me senti íntimo. O que era ainda melhor. Algo se distendia entre duas pessoas. E entre elas: uma história. Que me dou o poder de dizer que acabou. Porque despedir de olhos abertos é para poucos. Ei-la:



L

Cadáver

um cadáver finge
até o último instante
ao ar livre

há quem repare
naquele disfarce
enquanto que bate
no peito saudade.
...
- Entre dormir umas horas mais e acordar desanimado, e dormir umas horas menos e acordar desanimado, eu prefiro a segunda. Por isso estou aqui até agora.
- Tá ruim assim, cabra?
- Eu estou ótimo, quem tá ruim é o trabalho.
...
- Então, faz 1 mês que estão comemorando o quê?
- Nada demais, só sexo, amor e traição.
...
- De onde tu tira disposição pra ir na academia?
- Do espelho.

...
- Quer tomar alguma coisa?
- Chuva, por favor.

...
- Sim, eu gosto de filme dublado. E você?
- Eu prefiro legendários.

Água-viva

um objeto que passeia
frente as pálpebras
de um corpo que receia
qualquer leve contato que o seja

feito uma marca d'água
enfeita os ares dos mares
com estampas estúpidas
apesar de espécies, similares

uma semi-borboleta
na sua técnica de ser
esperando ser tocada
nada alada.

Calor

a mosca paira
sobre a pele
que nela se adere
como aquele
caducário corpo
numa mente inerte.

D

Diga por dizer.
Diga por prazer.
De dizer.

Gatos

quanta gatoria
quanta cantoria
era claro de noite
era escuro de dia

todo mundo dormia
todo gato saía
e ninguém
interromperia

repertório fraco
filé encontrado
numa lata de lixo
tal banda de bicho.

Insights

um tris
um triste estalo
que eu falo enquanto meto sua cara na parede da sala.

um pó
um pobre cara-pálida que quebra sua arma ao levar um tiro na cara.

Urbano


Era um domingo. Era um almoço de domingo. Não pense em família nem companhias humanas, não. Ele morava só por sobrevivência. Porque a única forma de vida é a sobrevivência. A vida mesmo, começa e termina no orgasmo. E 27 anos morando aqui, nem sequer respondia pra família. Correspondia era consigo mesmo e com as garotinhas de calcinhas flexíveis. Seus relacionamentos, de todo gênero e classe, não passavam de necessidades básicas. Feito água quando sede e gordura quando fome. Sinceridade pura.
Finais de semana sempre simbolizavam seu grau de decadência. Cafés no almoço, almoço na janta, álcool na madruga... Adoçava café com ressaca. Sem contar a higiene que andava em desalinho e mal passada. Enquanto os sábados eram tão vivos, os domingos eram tão ele.
Bate a porta. Via os pontos turísticos sempre tão óbvios e monótonos. Qualquer ouvido se torna penico porque sempre falta lixeira para lixos sonoros. Sente a mediocridade da falta do que fazer das pessoas no ar. Ele também era uma pessoa. Uma pessoa com cidades. Ou uma cidade com pessoas...

Musical

é de todo açúcar e música
se derrete a cada chuva
que acontece entre minutos
acelerados e impávidos
tão métricos e herméticos
partituras caladas
de poemas pélvicos.