O chute

Quando o sol já lambia as curvas do horizonte numa transa em que o previsível fruto é a noite, eu estava com meus pensamentos libertos cogitando sobre uma diversidade de assuntos até ser interrompido pela conversa do dono do bar próximo de casa com o meu pai. O dono do bar coordena uma espécie de “bolão” em que as pessoas apostam, sem repetições, no placar do jogo de futebol do domingo. Hoje: Equador e Brasil. A aposta custa dois reais e o prêmio vinte reais. Sendo assim, meu pai decidiu participar apostando em 3 pro Brasil e 1 pro Equador. Com meu escasso conhecimento desse tema, sei que a probabilidade de sair muitos gols num só jogo é pequena. Por isso, dei um palpite que fez meu pai voltar atrás e concordar comigo: 1x1. Confesso que antes tinha optado por 2 pro Brasil e 1 pro Equador, mas alguém já tinha feito.
Com um instinto feminino de desafio e competição provocado pelo consenso entre eu e meu pai, minha mãe decidiu entrar no lance arriscando no zero a zero. Pronto! Com o preenchimento das lacunas de apostadores as apostas encerram, só resta acompanhar o jogo que começaria dali a cinco minutos. Nunca tive paciência pra assistir jogos, então falei pra meu pai acompanhar enquanto fui ler alguma coisa. Ele, assim como minha mãe, também não tem paciência, conseguiu ver só o primeiro tempo. Só se interessavam pelo resultado. Decidi acompanhar o segundo, sempre mudando de canal, e até ali nenhum gol havia feito. Adianto que não tenho patriotice só porque estava torcendo para ambos os times ao mesmo tempo, pelo menos até o primeiro gol ser feito. Do Brasil. Agora sim, certifico que realmente tenho patriotice interina, torço pro Equador fazer um gol. Um apenas, nada mais. Sem ânimo para acompanhar a bola no campo, espero o resultado vendo outro canal, de longe. Depois de algum tempo, volto ao jogo e percebo um 1 ao lado do “EQU”. Sim!, mais uma vez a bola entra na rede, que dessa vez é equatoriana. 1x1, senão fosse um pequeno esforço, o mesmo que 0x0. Durante os dez minutos finais não consigo mudar de canal e torço para mais nenhum time. Quando a bola aproxima da rede já fico tenso, fecho os punhos e... ufa!, fora. Essa tensão se repete umas três vezes mais até o game over. Mais tarde, o dono do bar trouxe o prêmio. Ganhei!
Sem mais procrastinações, eu acho que a sorte é de todos, mas o caminho é um só. Pareceu até provérbio bíblico. Pra mim, a sorte está pra todo mundo diariamente, só precisamos fazer as escolhas certas durante o dia; há apenas uma sequência, que muda todo dia, todo o dia.


Vide o filme Corra, Lola, Corra.

Filantropia

Numa agência bancária não há nada que mantenha sua visão atenta por muito tempo. Consequentemente, só me resta ouvir a dialética que se manifestava entre um casal situado a dois indivíduos à minha frente. Ele começa com um suspiro:
- Esta fila parece que anda pra trás.
- Logo hoje que estou com pressa. – ela o responde confirmando que a insatisfação é mesmo contagiante. Sobretudo, em fila.
- Faz muito tempo que aquela mulher está no caixa 3.
- As pessoas deixam pra resolver as coisas tudo de uma só vez.
- Adido a isso, ainda temos de submeter ao moroso atendimento desses funcionários.
- Só são ágeis quando o horário de serviço chega ao fim.
- Eles são como os funcionários públicos: ganham bem por pouco trabalho.
- Não há mesmo explicação para aquelas fisionomias hostis.
- Aquiesço, até porque nem tudo tem explicação. Lembra do desaparecimento da filha do nosso vizinho? Ainda não sabemos o motivo, mas sei que ele não anda muito preocupado. Pudera, quase todo dia o vejo naqueles bares. Chega em casa só de madrugada. Nem se preocupa em providenciar um emprego.
- E tem a vizinha da frente que não cansa de receber cobradores à sua porta. Só ontem vi três de diferentes empresas. A meu ver, tem uma vida de conforto pelas compras mensais que faz. O desconforto fica por conta dos cobradores mesmo. E ainda, seus filhos não trabalham nem se preocupam com o futuro.
Após vinte minutos, toda a rua já havia sido asfaltada por comentários desprezíveis como esses. Por que ser figurante no drama alheio do que protagonista da própria comédia?
-Sua vez, senhora.
-Ah, nem vi que o tempo passou depressa.Realmente, talvez porque não tinha reparado que seu relógio parou antes de colocá-lo no pulso enquanto notava a vizinhança e suas particularidades.