Madrugada

e estava ali
tão vadio feito um gato pardo
sob o silêncio das luzes dos postes
até se encontrar perdido entre tantos sonhos.

Aqui em si

como um animal absorto em sua fome comunal
tenciono suas áreas despidas de qualquer contato alheio
e sinto o ímpeto da curiosidade pulsar entre minhas partes íntimas
ínfimas são todas as ideias que brotam em mim à medida que te desnuo
e peço que se não forem realmente como as quero, que as mantêm recônditas em si.
então.

Cada casa é um caso

10:30 da manhã.

- Rosa.
- Bom dia.
- Tá boa?
- Eu não tô não. Não dormi direito esta noite.

Rosa é desempregada, assim como o marido, com uma complicação no Conselho Tutelar, tem uma escadinha de cinco filhos, bebe, e não sabia que usava água morna no preparo da gelatina. Por necessidade, ela está trabalhando pra minha mãe, que é madrinha da filha mais velha dela, Glícia, 12. Rosa cata o feijão, enquanto eu tomo o café.

- Então, Rosa. Por que não dormiu direito esta noite?
- Dívidas. Tô preocupada...
- Deus é pai.
- Ó pra cê ver, Dete trabalha e nem precisa, porque o marido dela ganha dois salários, ainda tem o dinheiro que ele recebe do dedo [pelo acidente de trabalho que o fez perder um ou dois dedos]; o filho dela ganha um salário também e uma filha dela recebe o Bolsa Estudante...

Dete lava roupa em casa às vezes, muito bem por sinal, tem uma escadinha de seis, e tudo isso que Rosa acabou de falar.

- ... O meu Bolsa Família foi cortado.
- Porque Glícia teve notas baixas e pouca frequência, num foi?
- Pouca frequência... foi. Será que posso voltar a receber?
- Sei não, no meio de tantos milhões de famílias, é complicado. Talvez se Glícia melhorar nas notas e frequência, pode ser.

Glícia é afilhada de minha mãe, está na primeira série, desinteressada, muito atrasada na escola, mal sabe ler, tem uma letra bonita, cabelo demasiadamente crespo, magra, fotogênica, excessivamente mentirosa, pra melhorar sua educação já morou com a tia, com a mãe, com a avó, passou uma semana em casa. Deve ter voltado pra mãe, ou pra tia. Tem 12 anos. Estuda em tempo integral pra diminuir as despesas em casa, ganhou uma presilha da minha irmã e a perdeu na escola no dia seguinte.

- Vou descadastrar Glícia do Bolsa Família.
- E o Bolsa Estudante, Rosa?
- Só recebe quem tem filho com dezesseis anos.
- E quando Glícia completar dezesseis tu recadastrará ela no Bolsa Família?
- ...

Bom, sei não, essas ajudas governamentais me deixam com um pé lá outro cá. Quantas dessas Bolsas são gastas indevidamente? Estimular o estudo com dinheiro? Assumir, ou não, os filhos por causa delas? Ter filhos para aumentar a chance de ganhá-las? Mas, quantas famílias vivem, ou melhor, sobrevivem por causa delas?
Não sei mais se devo concordar com Fernando Pessoa: “Sinto-me feliz por haver tanta coisa que eu não compreendo”.

Minimalismo

descia
por entre o silêncio escuro da sala de estar
enquanto tecia.

Mais que coisas

Não estão findas, pelo visto
As palavras do profeta sobre
como as coisas devem funcionar
Mas numa coisa persisto:
As coisas são mais que coisas
Sob os olhos que bem sabem enxergar.

Fim de semana

Missa, bar; visitas íntimas
São as tarefas de domingo
Dos que se deixam levar
E só acabam adiante
Quando o sono se dá.

Por toda semana que há de passar
Confesse que anseia pelo fim retornar
Pecados, mágoas e carências ajeitar
Até que acaba o domingo
Tudo teima em voltar

Agora sim, vamos sonhar.

Transbordar

Sentado na janela vejo a chuva entrar
Pelo telhado, furado, quebrado, culpado
A poça se espalha em cada lajota, tortas
Pelo rejunto se escorrem a transbordar

De pé na janela olho os móveis a molhar
N'água me olham com a alma a alagar
Foram-se encosto, assento e adjunto adnominal

Arrisco-me a saltar e despedir do temporal.