Vi Vendo


Cá sentado vejo tanta coisa:
É moça do vestido estampado,
É menino do relo* perdido
E o prego no solado gasto.

Cá andando eu vejo muito mais:
Eu vejo o que eu via sentado,
Vejo escondido e inválido
O ânimo do aposentado.

Agora eu deito e durmo
Pra não ver a vida passar
Sem que eu veja
Outro mundo.

*Relo: ...uma pipa enrosca uma na outra. Como a linha geralmente tem cerol, a linha mais fraca se corta e a pipa vai embora. O relo é na verdade essa disputa de ver qual pipa vai ou fica. No poema, o "relo perdido" cita que a pipa dele foi embora.

Matinal

Enquanto ele tomava o café com pão, a mãe estava junto a pia lavando a louça. Mesmo mastigando, ainda dava pra ouvir o roçar do Bombril no fundo da panela de pressão. E saí uma pergunta:
- O papai ainda dorme?
- Um hum...
Naquele instante começava a chover e os pingos pareciam sementes de uva caindo pesadamente nas telhas de cerâmica. As aranhas lá no alto estavam assustadas.
- Corre menino! Vá pegar as roupas que estão no varal, depressa!
E ele foi como sempre vai, sem nenhuma palavra. Por sorte, o café dormido não estava muito quente. Em meio minuto ele já vinha carregando sobre os ombros as roupas e um lençol. Mal via, porém sentia o cheiro carinhoso do amaciante. No quarto, jogou tudo em cima da cama. E naquele instante a chuva já havia engrossado, o café esfriado e a fome morta. Do quarto dava pra ouvir o barulho da panela batendo na pia de inox. Desse jeito papai levantará mais cedo do que de costume.
O menino sabia que não tinha graça alguma acordar cedo. A casa tornava triste, sonolenta e mal iluminada por causa da madrugada. Todavia, somente àquela hora podia ver a mãe lavando a louça mal-humorada e com pressa pra ir à feira. Não, ela não vai comprar. Ela vai vender. Com chuva ou sol, o trabalho feirante era sagrado. Não podia faltar nenhum dia que as verduras e as frutas poderiam apodrecer se não vendê-las. Sem contar também com o fiado que tinha pra receber.
Coitada. Àquela hora e já tinha tantos planos em mente. Bom seria a realização de pelo menos metade deles. Lembrou que tinha que passar no armarinho e comprar um zíper bege. Mas isso seria na volta.
Pronto! Lavou a louça, mas não enxugou. Deixou secar no escorredor.
Olhou pro relógio ao lado da porta.
- Vixe! Já faltam vinte pra seis.
Ajeitou tudo como de costume, só que mais rápido. Fez o sinal da cruz, abriu a porta e apressou o passo.
Lá vai ela descendo ladeira abaixo. Bolsa de lado e colar de miçangas no pescoço. Dobrou a esquina.
Só volta no anoitecer. Deve comer lá mesmo.
Assim, a rotina continua.

William Gomes, 14/03/08

Pela tela do PC.

E no msn...
ju diz:
ai, Will... esse negocio d ficar em casa sozinha no domingo... n dá certo
ju diz:
desculpa aí s eu falar qq bobagem p vc
ju diz:
hehe
william-gomez@hotmail.com diz:
nada que saia de sua boca é bobagem
william-gomez@hotmail.com diz:

e adoro quando me chama de Will
ju diz:
mas n vai ouvir da minha boca, vai ler dos meus dedos
ju diz:
hihi

Tá vendo como a tecnologia acaba com o romantismo de qualquer um. :)

Presente

11:45. Ele chega em casa e bate a porta. Corre pro quarto e abandona em cima do lençol listrado da cama a mochila de cor cinza e azul-marinho. Põe sua mão nanica dentro da mochila e pega um embrulho com estampa de peixes. Vai correndo pra sala. Senta no sofá ao lado da poltrona ocupada pelo pai lendo um jornal emprestado.
-Toma! – entregou rapidamente e desejou um feliz dia dos pais bem mecânico.
Ou ouvir a doce voz, o pai pôs o jornal sobre o colo e os óculos em cima da mesinha de mogno.
-Vem cá. Senta aqui. – segurou-o fortemente pondo-o em seu colo fazendo o barulho do amasso das folhas de jornal. Vamos abrir juntos pra ver o que é.
O laço verde-cana foi arrancado delicadamente pelo menino enquanto o pai foi tirando a fita adesiva com cuidado para não rasgar o papel. Esse que seria guardado por anos embaixo do colchão. E viu dentro do saco transparente, uma camisa branca com a foto de sua esposa e do menino num Natal frio e quieto. Embaixo da imagem estava escrito com uma fonte lilás, a manjada frase: Feliz Dia Dos Pais.
-Foi a única foto que eu achei.
-Não tem problema. Muito bonita. – deu um beijo no olho do guri e foi pro quarto.
O menino foi pro quintal pegar sua bermuda jeans e sua camisa vermelha que estava no varal. E seguindo pro seu quarto, viu que a porta do quarto do seu pai estava fechada. Parou diante dela. Pensou. E seguiu pro seu. Apoiou os cotovelos no parapeito da janela para ver o céu. Azul e vazio.

Ele não sabia que a mudez tomaria conta da casa nos próximos 365 dias.



William Gomes, 25/02/2008