Telebeatice

Mamãe não tem carro, e por esse motivo eu estava sentado na porta de casa esperando tia Getúlia me buscar com seu carro. Antes de a família tornar o que é, era como um ritual ir à casa de minha avó aos domingos. Após alguns segundos de contemplação àquele céu vivo e pesado de domingo, o carro dela surge na esquina. Eu me levanto e a espero junto da calçada. Sua mãe não vai? , ela me pergunta; Não, ela vai outro dia, respondi entrando no carro. Na verdade, minha mãe não gosta de ir lá quando há muita gente, até porque o propósito dela é ver minha avó mesmo. O carro não caberia mais ninguém porque o carro de tia Getúlia cabe comodamente e propositalmente sua família. Chegando à casa de vó, já percebo a quantidade de pessoas que estão lá pela intensidade das vozes que estão falando e se cortando na cozinha. E aquele dia a balbúrdia era demais. Quando cheguei na sala de estar, e por estranheza não havia ninguém, notei o copo de água que estava em cima da TV, a única coisa que fazia ruído ali. Bebi e coloquei o copo no mesmo lugar. Desci pra cozinha ao encontro da algazarra e também pra pedir a bênção dos parentes. Bênção que só vim a entender seu significado, quando por vontade própria me recusei a querê-la. Depois de minha apresentação, fui pro terreiro na frente da casa me juntar aos primos. Enquanto brincávamos, ouvi minha tia exasperada perguntando a todos quem tinha bebido a água que minha avó tinha colocado pro padre de algum programa católico benzer. O programa começaria dali a uns 15 minutos. Imaginem o tamanho da tragédia que se constituiu na mente de um infante de 8 anos. Não podia confessar o crime, fraco como eu estava, longe de minha mãe. Tive uma idéia, não das melhores. Logo em seguida, quando todo mundo foi almoçar, deixando a sala vazia, peguei o copo de vidro todo embaçado das indignações de minha tia e o enchi na pia do banheiro. Coloquei-o no mesmo lugar, no instante da abertura do programa. Pronto, o terreiro era meu novamente e eu retornei a ser um humano – com o coração um pouco mais acelerado que o normal. Ao me deitar na grama, com a consciência mais verde do que ela, minha avó me chamou pra almoçar. Segui pra cozinha deixando-a na sala com seu programa. “Agora, meus irmãos, vamos erguer este copo de água e pedir ao Pai que atenda a todas as nossas preces e que faça com que essa água purifique-nos de todos os males. Amém. Bebamos.” Apressei meus passos. Só quando cheguei em casa no fim da tarde, morto de sede, foi que bebi água lentamente sem nenhuma molécula de preocupação ou heresia. Até hoje sinto um gosto estranho nas águas bentas, sobretudo as bentas por telepatia.
Um país se faz com homens e livros.
Edite, funcionária da biblioteca municipal.