Areia

que derrama o tempo
numa estreita descida
ora grão, ora ar, ora vida

rastro de onda ida
se reforma no firmamento
numa simbiose líquida.

Prestidigitadora



e do metal
cru
desnudo
fez-se forma
cor e movimento
agia tão ágil agora
cortando brisa mundo afora
que logo mais nem se mexia
o vulto tornou-se sombra
um movimento atrasado que acabara de parar
não mais pairava pelos ares
congeladas pela tela onde só o pensamento ia
suas curvas sinuosas se apresentavam frias
como imagem
numa moldura
só lida.
Ingrid e William, em sua primeira cria.

O folder

Então. Não conseguia mais concentrar na leitura. Não pelo desconforto do sofá, mas pela fome que batia, e o cigarro já não mais o distraía também. Pôs o marcador de frente da página que estava lendo e fechou o livro. Seguiu para a cozinha enquanto sugava o resto de vida do seu cigarro. Jogou-o na sacola de lixo pendurada no canto da pia e pegou um prato e uma colher. O feijão havia sido esquentado há duas horas, e o arroz frio se mantinha no mesmo estado do almoço; de modo que, o primeiro aquecia o segundo num contato mútuo. No prato, o fundo estava coberto de feijão sob um médio monte de arroz. Tampou as panelas novamente, fazendo o vizinho que bebia água, ou fazia alguma coisa sem importância, escutá-lo. Rumava para o quarto segurando as abas do prato pela ponta dos dedos, para não melá-los. Sentou-se na beirada da poltrona porque estava cheia de sacolas plásticas e roupas usadas durante o dia, e ligou a TV mais por hábito do que interesse. Comia à vontade, a seu modo, a seu estilo, até as batidas da colher no prato ficarem mais constantes: sinal de que tinha acabado de acabar. Abandonando a TV falando merda sozinha, foi pôr o prato na pia. Jogou-o lá juntos com os outros de modo grosseiro, enquanto a colher deslizava pelo prato até quietar-se no fundo da pia. Pegou um copo que secava no escorredor de pratos e encheu-o de água da torneira, bebendo em grandes goladas. Agora, sentia uma vontade enorme de ir ao banheiro. Não pela água; pelo que comeu durante o dia. Ao chegar ao banheiro viu o suporte de papel higiênico apenas com aquele rolo, sem nenhum centímetro de papel. Merda! Caminhava pela casa a fim de encontrar algum papel que poderia suprir a falta que vivenciava àquele momento. Enganou-se ao achar que encontraria guardanapos na cozinha. Na sala, sobre a mesa, encontrou um folder dos Testemunhas de Jeová que dizia: Que Esperança Há Para Entes Queridos Falecidos? – não pensou duas vezes e levou-o ao banheiro consigo. Esvaziava-se aos poucos, sem pressa, sem se quer ler as passagens sagradas que logo mais sujaria. Por fim, limpou-se, vestiu-se e puxou a corda observando a água que selvagem e correntemente descia para a fossa. Ele sentou no canto do banheiro, ao lado da porta, para ouvir a água que vinha aos poucos se juntando na caixa plástica da descarga acalmando-o e fazendo apoiar a cabeça na parede. Dali, achou o banheiro tão alto, tão alto... Viu uma formiga descer desesperadamente e passar por cima de seus pés. Coitada, talvez viesse fugindo daquela aranha que se escondia entre as sujeiras da teia e do teto. O chão estrondou com o tapa que ele deu. A vida miúda daquela formiga acabara de diminuir ainda mais. Cansou-se daquele ambiente. A descarga já estava silenciosa e renovada. Levantou e se viu no espelho. Lavou as mãos com o sabonete azul que derretia sobre a pia e enxugou-as nas pernas da bermuda. Abandonou o banheiro ao apagar a luz. Se vir a calhar, os parentes daquela formiga poderiam entrar no balde de lixo e ler o folder sem se importar com a merda que há ali.

Fome

a comida na boca aberta descia
pelo bico que a mãe trazia
era determinada e altiva
queria a evolução rápida da cria

não, seu genitor o desconhecia
voar livre era o que ele queria
mas com essa cria... não podia
então, deixou sua família

pelo bico da mãe o filhote crescia
o olho iluminava sempre que o sol nascia
àquela hora, do ninho ele saía
corpinho frágil e trêmulo no chão espatifaria
se a cobra que o engoliu não estivesse ali, faminta.

Começo

parágrafo
para grafar o vácuo que sobra do pensamento
para pensá-lo

modelo
para moldar o modo de criar o quê
para fazer

preliminar
para eliminar a tensão e relaxar
para gozar

prólogo
para logo alongar o enredo
para lê-lo

lagarta
para largar a terra e o céu pintar
para alar

acender
para entender o que não sabia
paradiafonia

acordar
para nascer, crescer, reproduzir, morrer
para viver.