A morte

e de repente foi que me vi, ali
passar diante de mim
o que futuramente eu continuava sendo
essas coisas que a gente se torna sem notar
copo d'água que transborda de tanto evaporar
um grito, um gemido, um apito
tão longe de tão íntimo
me desperta com um tapa na cara
que a certeza de morrer
perdeu a graça.

Você tá por fora de mim

e
eu
eu s
eu so
eu sou
eu sou a
eu sou aqui
eu sou aquilo
eu sou aquilo lá
eu                 lá.

Lá eu

para as sujeiras das unhas
que não crescem mais,
há alguns anos atrás.

os meus cachos revoltados
com a tesoura dicaz,
faz alguns anos atrás.

a minha roupa de traça
está engomada demais,
não me reconheço mais.

minha cara de santo
profissional incapaz
de ser aquilo que sou
não o que o dinheiro me faz.

Aquilo

o homem que diz
que disco voador
existe

menino
aquele ponto ali no céu
aquilo

prefiro acreditar
que seja o pó
que seja o poema no espaço
um desabafo
de um poeta
um astronauta
uma longa cauda
de um cometa
uma estrela
perdida
na avenida

avemaria!
o dia, o alicerce
já amanhece
até a manhã
até amanhã,

esquece.

Meio-fio

foi o meio-fio
que dividiu
tudo entre ser e estar.

Sob

tinha uma mão calada
dentro do bolso da calça
a pensar no afago do pau
que a escuta e cumplicia.

Sequencia

escrever é algo que pulsa e me assiste.
se constroi a partir do que me ocorre.
tudo vale e vive até que morre.
a cada dia que persiste.
...
- Você é do jeito que eu acho bom.
- Meu ego agora atingiu uma meta de anos...
...
- E eu tentei descrever tua personalidade, mas não consegui.
- Que foda! Nem eu falaria tão bem de mim.
- É sério, eu tentei, mas não consegui...
- Comassim? Deve haver alguma palavra que me classifique. Seu vocabulário não é tão pequeno.
- Pra você ver...

Entra e sai

pensa mente
pensa mente
pensa mente
pensamento
pensamente
pensai mente
pensai mente
pensai mente

no hospital

...
-Moço, há horas que estou andando pra lá e cá atendendo os pacientes, e te vejo aí. Está sentindo alguma coisa?
-Não, minha saúde tá ótima. É que costumo frequentar lugares em que me deparo com pessoas com problemas maiores que os meus, isso é uma humilhação pra eles - eles, meus problemas - , então eu fico bem.
...
- Eu estou afim de um menino.
- Outro?
- Mas não sei porquê. A gente não tem nada a ver. NADA!
- Acontece, é o 'carnal' falando mais alto... Aproveita o pouco tempo que dura...
- Ele não me dá bola.
- Dá um chute nele então.

Prezar

não era bela. nem puta nem talvez donzela. apenas ela. olhar fixo ao chão, tão submisso a qualquer acaso, mas preciso. seus braços em duas arcadas suspensas nos ombros nus na camiseta, tinham as mãos deslizantes a acalmar a rebeldia silenciosa dos cabelos. alisava tranquilamente, desde a fronte até o encontro do polegar esquerdo. este sempre tão ligeiro, sustentava a réstia com suas mechas a girar sobre ele, numa dança lasciva que a si própria se prendia. um trabalho que denunciava o total obedecimento do corpo. aquele ato mantinha seu charme particular que não prevalecia idades nem classes. sejam avós, mães, ou menininhas. todas na expectativa para sua próxima missão. por fim, olhava as mãos. aquelas linhas que foram abrigos imediatos de vários fios de cabelo.

tudo belo, num simples prender de cabelo.

Asterisco

poema recém-nascido
pensamento falecido

tudo tão repentino.

O ter

Universo em instantes

quando o bem me quer
o mal enfrenta
duvido se meu corpo aguenta
esse movimento que desfaz
o universo em instantes
versos e sentimentos mutantes

decompondo eu vou aprimorando
meu acertos e os meus enganos
vou me renovando ao invés de ir andando.

Escuta aqui

eu quero uma vida de reserva
pra me entregar aos instintos
vinte anos são mais que precisos
aguardo ali, na sala de espera.

não sinto o gosto dos vícios,
da posse utópica de vida
esse quê saudável o qual me imponho
tô farto de sonhos.
seria eu uma reles latrina?

Um corpo que dorme

a meia-luz ilumina os contornos absolutos dos obstáculos de músculos da tez estática. a respiração se disfarça num grito mudo de vida a se esbarrar pelas narinas. a face interpreta com sua vulnerabilidade exposta o íntimo ser, dos sonhos que não passam de atuações sinceras de prosopopéias alheias. enquanto dorme, o corpo se mantém em sua mais intensa insipiência, tal qual um feto no silêncio materno e mundano. o sono é a imobilidade da matéria diante do fluxo contínuo do universo abstrato.

Etiqueta

meu bem, não me diga o que fazer
um desejo ignorado é um eterno sofrer
eu quero bater nas costas do mundo
cara-a-cara num desgosto profundo
reparo nas putas e travestis num estilo casual
jogando no bicho nas entranhas do banco central
vou sair, por aí,
cumprimentar os mendigos com ar de marginal
cuspindo o tempo sobre os meios-fios da avenida
lixo de butique são duplicatas vencidas
assassinadas com a moral falida
hey burguesia!
a gente se vê na fila do caixa eletrônico
vestidos de ladrão num terno monocrômico.

Psicastenia

A TV estava coberta com um lençol de solteiro estampado. O cão estava mudo e estático, coagulado como os demais móveis cobertos. A chuva sempre incauta, indiferente à fragilidade das moradas. Se rejeitarmos as andanças do ponteiro e as gotas se deformando no telhado, perceberíamos que todo aquele silêncio que pairava no ar trazia consigo uma dose de respeito. Talvez desconfiança.
- Lúcia. Tô indo levar a janta de seu pai no trabalho dele. Não demoro.
A porta bateu e a menina continuava olhando para a parafina da vela que liquefazia antes de beijar a porcelana fria do pires. Estava com sede. Na escuridão, a cozinha parecia enorme e tão longe. Sua sombra na parede também: enorme. Disforme. Ela evitava qualquer movimento, mínimo que fosse, para que a sombra obedecesse, imitando-a. Não tinha jeito, a chama da vela estava viva e agitada demais, tentado se desvencilhar do pavio. Para isso, sua chama tentaria ficar imóvel o máximo que podia para queimar-se mais depressa e se libertar, como nós, espiritualmente. Lúcia percebeu que uma corrente de ar pirraçava a chama de momento em momento. Ela viu uma boca tão carnuda e vermelha tão cintilante que parecia mais sangue do que batom.
- Você está com sede. Por que não vai até a cozinha?
Aquela voz tinha um tom provocativo. Pronunciava as palavras pausadamente, mexendo os lábios de um modo exagerado.
Lúcia era muda. Nunca se sentiu tão desprotegida. Encolheu-se o máximo que pôde no sofá. Seu joelho apertava o peito intensamente.
- Vou buscar água pra você, menininha. Quem sabe você acalma e pára de se tremer.
A chama agitou tanto que quase apagou. Nesse momento, a menina viu dois olhos amarelos tão grandes, que pareciam saltar das pálpebras escuras. A chama se acalmou. Lúcia queria correr até a porta da frente, mas não sentia suas pernas. Aflita, ela ouviu os passos se aproximando lentamente. A menina desmaiou ao sentir a voz tão próxima de seu ouvido.
- Lúcia, voltei.

Depois daqui de novo

no bebedouro seco estava um pássaro
tão úmido como o último orvalho
seu peito arfava em modo abiótico
olhava o espantalho além dos galhos
vivendo aquele sonho trajetório
o corpo abandonado pelo espírito
espiritualmente tão lunático
materializava tão perdido
na dimensão do incompreendido
sem bico, descaracterizado
será humano ou bicho recém-nascido?
a dúvida que antecede o ócio
no mundo onde o inesperado é óbvio.

Inovo

Ser uma palavra

és um escravo do jogo lexical
a tudo ao redor foi-se denominado
das entranhas noturnas do beco sensual
transporta a mente materialmente para a mansão do alienado
a virgem metamorfoseia numa puta livre de qualquer intenção financeira
assassinato e desamor a quem não te cabe nem convém
vira-latas se entendem numa particular sexual maneira
agora tenta no mais fundo abstracionismo descobrir a proposta de ser
então encontra o abismo existencial e intitula-se de tudo: nada.

Caminhos

tinha um caminho numa pedra
que ao catá-la descobri
saiu de lá uma formiga surpresa
percorrendo seu caminho dali
sempre atenta
palpava o tudo com as antenas.

tinha uma formiga no caminho
que ao piscar a perdi.

tinha eu no meio do caminho
tinha um caminho e meio.
- Garganta inflamada é tão ruim...
- Gargareja com limão, vinagre e sal.
- É ruim também.
- Né não, é gostoso. Exercita os músculos da face tbm. ... Então é tomar remédio mesmo.
- Não gosto de remédio também.
- Gargarejo não é tão ruim não. Coloca mais sal e limão, e menos vinagre...
- É não. Eu ia falar isso agora.
- Mas se tiver ruim ainda, corta uns tomates e alface e come!

Caso

olha só pra você
quanta falta de prática
seu semblante sem ser
torturado por amorosas táticas

diga que está no ponto
de reviver nossos desencontros
assumir o comando e à prova de fogo
nos atirar no rebanho.

Mais uma

hoje é aquele dia
pra saciar a mania
do corpo acalmar
sem se murchar

cubra minha ponta
agora faz de conta
que te escrevo
quando me mexo

te pingo e pinto
em cada segundo
componho um gemido
ora vil ora cúmulo

nessa trama que se transa
entro em transe no desfecho
inesperado me amansa
com o tempo eu recomeço.

Vocação

a mosca estava apavorada
de encostar no microondas
depois da formiga modificada
com funcionalidades atômicas

enquanto a mosca observava
a formiga ganhava uma nova cor
toda vez que se recarregava
os números enlouqueciam no visor

a mosca resolveu tentar pelo ciúme
fixou-se no centro do prato e esperou
houve uma explosão como de costume
transformando-a num cudelume enganador.

Trajeto

desce o peito até o joelho
e eu me cresço num lampejo
submissa submete e sobe
quando cê geme e dá um beijo

contorna-a num banho felino
suas curvas e os seus declínios
quando encontra a poça espessa
sinal de que chegou ao seu destino.

Formas

quando o bem me quer
o mal enfrenta
duvido se meu corpo aguenta
esse movimento que desfaz
o universo em instantes
versos e sentimentos mutantes

decompondo eu vou aprimorando
meus acertos e os meus enganos
vou me renovando ao invés de ir andando.

Autenticidade

apenas o script rasurar
esfregar as folhas pelo corpo
esferográfico tatuar
brotar em si o que outrora morto
tingir o mundo em multicores
das diferenças fazer acordo.

Autêntico

fora do padrão.

Dose

quatro anis ingeridos
feito vitrola quebrada
degustada sob cansados ouvidos
numa noite musicada, de gemidos

acaba-se pela falta suprida
por uma simples nota


a da vida.

A folha




Cotidiálogos

...
— Você sai para uma entrevista de emprego e volta com uma garrafa de vodka pela metade da metade, um olho sem a lente, dois botões a menos na blusa e o zíper... Oh meu Deus!

— É isso mesmo, começo hoje à noite. Rua da Libertinagem, nº 7, esquina 3. Uma recomendação: prefira trajes com elásticos ou velcros. Você tem algum barbeador para me emprestar?
.
...
— Ele dizia que me amava!
— Eu sei, ele me diz a mesma coisa quando troca nossos nomes.
.
...
— Você poderia me dizer que horas passa o ônibus?
— Sempre que alguém vem até aqui no balcão exatamente nessa hora.
.
...
— Amor, seu café está com um sabor divino.
— É porque tinha acabado o açúcar e aumentei a dose de má vontade.
.
...
— Você poderia me dizer se tem alguém nessa casa?
— Até você aparecer na esquina as luzes estavam acesas.
.
...
— Meu bem, como você entende nosso relacionamento tão bem?
— Com a ajuda de uma amante.
.
...
— Que estranho, lembro de ter deixado a luz da sala acesa.
— É que haverá um aniversário-supresa. Pra quem será?
— Seria para mim.
— Não liga não, vamos pra cozinha, tá todo mundo lá.
.
...
— Qual o horário de funcionamento da lanhouse?
— Das 14:55 às 18:10 e das 20:25 às 23:59; sempre que o vizinho liga o computador.
.
...
— Por que você escolheu um bebê tão magrinho?
— Para o correio não cobrar tão caro.
.
...
— Eu preciso de alguém que me ouça nesse momento tão difícil.
— Estamos transferindo a sua chamada para um de nossos atendentes. Por favor, aguarde.
— Atendimento ao Consumidor, Priscila, em que posso ajudar?
— Você acha que tenho alguma "tendência suicida decorrente de uma solidão extrema"?
— Não senhor, mas poderá garantir um velório bem velado com a presença dos nossos figurantes. Pastores, mórmons e estilistas estão em promoção; cachorros e gatos são brindes. Posso também oferecer um desconto maior para amantes e travestis.

sempre quando uma alma espera

sem poder estar no lugar que se quer
sem folhas no calendário passado
sem saber se homem ou mulher
sem liberdade de fugir do fadado

sem tempo de entrar no ritmo
sem pecado pra brincar de amor
sem desejos para construir o íntimo
sem devolver ao corpo o furtado calor

sem ter razões pra revoltar
sem sentimentos para cometer
sem o agora fugaz
sem uma história para ser

semanas
semelhanças
semáforos
sempiternos.


Uma humilde comemoração à minha centésima composição.
Só pra não passar em branco. 100 é significativo. 101 tbm...

Ponto

todo encontro é mútuo
todo tempo é curto
todo ócio é fruto
do excesso póstumo

a vida inteira é um resumo.

Sexo (ou Amanhece)

Meninos: poetas distraídos
Meninas: confusas bailarinas
Depois que crescem

Se decompoem e se conhecem.

Garantia

Fiz um versinho pequenino e sutil
Para lembrar do meu amor que partiu
Disse que ia procurar outro par
Enquanto eu jogava numa mesa de bar
Mas esperei ganhar mais uma partida
Pra conhecer a próxima da fila.

Sem motivo não há sentido

não quero ser o preferido por sua falta de opção
mesmo que em meu comando está a situação
por tal conjuntura sentido não faz minha traição
assim eu traio minha própria razão
cansei de ser o tal, o qual, o mau
você nunca me diz um não

Imperativo alternativo

espera
que a roupa no varal ainda seca
venha pra cama e fecha a janela
veremos o que a noite nos reserva.

apressa
pegue sua roupa e não me peça
só mais outra vez daquelas
saia da minha atmosfera.

foi-se a primavera
estou farto das heteras
seja mais do que minha paquera
sonho contigo puérpera
desejo-a

só nas vésperas.

Pequenos a tempo

enquanto alguém meu banho prepara
eis o momento do dia em que o castelo se cala
sou um rei pequirente envolto num robe de cetim
proprietário do luxo em volta, mas inquilino de mim
quisera eu ter sonhos pequenos
para realizá-los a tempo, enfim.

Leitmotiv temporal

O mundo atualiza a cada agora
A água da chuva evapora
O vento bem-vindo vai embora
O amor erra e aprimora
A hora passada se contorna
O tempo nos cansa em reviravoltas
A puta sua e retoca, devota
O orgasmo gasto revigora
O cliente feliz sempre retorna
A ressaca da noite é a aurora
Quem luta sozinho se revolta
A lembrança fixa na fotografia que mofa
A ortografia se reforma
Nos livros que a professora adota
Éramos bicho numa época remota
A cada ano que passa o homem comemora
Tudo aquilo que a morte deixou pra outrora
A própria vida deteriora, falsa compositora
De biografias ignotas
Embora nossas.