Entreato

Após duas horas de seu almoço dominical, Edgar foi trabalhar no que de melhor ele sabia fazer: cortar árvores. Eliminava-as sem nenhum remorso, e sua idade avançada e a necessidade do dinheiro o ajudavam a sentir assim, sem uma folha de sentimentalidade ambiental. Dessa vez, era uma árvore que ficava fincada próxima à porta do cemitério, e assim atrapalhava a ampliação da entrada. A direção do cemitério resolveu aumentar a largura do portão, talvez para receber os futuros hóspedes mais confortavelmente, e aquela árvore não deveria estar ali. É uma majestosa árvore, de folhas compridas e cintilantes que há tempos vem testemunhando as lamúrias dos vivos e as confissões dos mortos. Edgar chegou meia hora mais cedo do combinado acompanhado de um facão e pulsando determinação nas veias. Começou trepando a folhosa parecendo um menino astuto, sedento por aquela goiaba lá no alto, e depois se acomodou entre certos galhos e começou a amputá-la violentamente sem dar ouvidos ao que ela lhe dizia. Rapidamente o chão estava coberto de galhos, braços, pernas e dedos, desenterrados. As almas acordaram por causa do barulho profundo do facão e ficaram observando, quase vivas, aquele momento que fazia do cemitério um teatro onde aquela peça é interpretada melhor do que os funerais a que estão entediadas de assistir. Se pudéssemos vê-las ali, ficaríamos encantados com o modo de se organizarem como platéia. Enquanto isso, Edgar conversava com o zelador do cemitério dizendo que já tinha derrubado uma mangueira naquela manhã, e consequentemente o dinheiro da cerveja já estava feito. O sol já lambia as convexidades peludas dos montes quando a entrada do cemitério se sentia nua pela ausência da árvore. Edgar vai-se caminhando, sem pressa. As almas aplaudem o fim do ato, e a carência regressa às suas fisionomias; agora só lhes restam deitar sobre suas camas ósseas e sonhar com lembranças futuras de uma nova vida. Enfim, anoitece e silencia.

6 glosas.:

Giuliano Marley disse...

Clap clap clap

Fabiano Che disse...

Sensacional

Vanessa Gomes disse...

Incrível. Se houvesse uma palavra mais bonita a colocaria aqui.

É simplesmente linda e atraente a forma majestosa como descreves situações, fazendo com que nós - míseros leitores - fiquemos cá sentindo toda a cena que acontece ali: nos teus textos.

Teus textos sempre me passam sensações e emoções as quais não sinto quando leio outros blogs.

=)

dani.ella disse...

Já pensou em um nome para seu livro de contos!? Acho bom começar a pensar

Teus contos são simplesmente fantásticos
=)

Miller A. Matine disse...

Não quero fazer parte daqueles que homenageiam depois que o homenageado já não está mais entre os viventes. Os seus escritos, William, são daqueles que dão a sensação o leitor a falar para si mesmo: “ como foi que eu não pensei e escrevi isso antes!”. Abraços do Lepidóptero

Miller A. Matine disse...

Espero que os leitores percebam o teu escopo: vejo que o que ptocuras não é somente estetizar o seu pensamento, mas tecer criticas, claro, construtivas. quem nunca disse ou notou isso antes, ainda nao leu William!