O folder

Então. Não conseguia mais concentrar na leitura. Não pelo desconforto do sofá, mas pela fome que batia, e o cigarro já não mais o distraía também. Pôs o marcador de frente da página que estava lendo e fechou o livro. Seguiu para a cozinha enquanto sugava o resto de vida do seu cigarro. Jogou-o na sacola de lixo pendurada no canto da pia e pegou um prato e uma colher. O feijão havia sido esquentado há duas horas, e o arroz frio se mantinha no mesmo estado do almoço; de modo que, o primeiro aquecia o segundo num contato mútuo. No prato, o fundo estava coberto de feijão sob um médio monte de arroz. Tampou as panelas novamente, fazendo o vizinho que bebia água, ou fazia alguma coisa sem importância, escutá-lo. Rumava para o quarto segurando as abas do prato pela ponta dos dedos, para não melá-los. Sentou-se na beirada da poltrona porque estava cheia de sacolas plásticas e roupas usadas durante o dia, e ligou a TV mais por hábito do que interesse. Comia à vontade, a seu modo, a seu estilo, até as batidas da colher no prato ficarem mais constantes: sinal de que tinha acabado de acabar. Abandonando a TV falando merda sozinha, foi pôr o prato na pia. Jogou-o lá juntos com os outros de modo grosseiro, enquanto a colher deslizava pelo prato até quietar-se no fundo da pia. Pegou um copo que secava no escorredor de pratos e encheu-o de água da torneira, bebendo em grandes goladas. Agora, sentia uma vontade enorme de ir ao banheiro. Não pela água; pelo que comeu durante o dia. Ao chegar ao banheiro viu o suporte de papel higiênico apenas com aquele rolo, sem nenhum centímetro de papel. Merda! Caminhava pela casa a fim de encontrar algum papel que poderia suprir a falta que vivenciava àquele momento. Enganou-se ao achar que encontraria guardanapos na cozinha. Na sala, sobre a mesa, encontrou um folder dos Testemunhas de Jeová que dizia: Que Esperança Há Para Entes Queridos Falecidos? – não pensou duas vezes e levou-o ao banheiro consigo. Esvaziava-se aos poucos, sem pressa, sem se quer ler as passagens sagradas que logo mais sujaria. Por fim, limpou-se, vestiu-se e puxou a corda observando a água que selvagem e correntemente descia para a fossa. Ele sentou no canto do banheiro, ao lado da porta, para ouvir a água que vinha aos poucos se juntando na caixa plástica da descarga acalmando-o e fazendo apoiar a cabeça na parede. Dali, achou o banheiro tão alto, tão alto... Viu uma formiga descer desesperadamente e passar por cima de seus pés. Coitada, talvez viesse fugindo daquela aranha que se escondia entre as sujeiras da teia e do teto. O chão estrondou com o tapa que ele deu. A vida miúda daquela formiga acabara de diminuir ainda mais. Cansou-se daquele ambiente. A descarga já estava silenciosa e renovada. Levantou e se viu no espelho. Lavou as mãos com o sabonete azul que derretia sobre a pia e enxugou-as nas pernas da bermuda. Abandonou o banheiro ao apagar a luz. Se vir a calhar, os parentes daquela formiga poderiam entrar no balde de lixo e ler o folder sem se importar com a merda que há ali.

8 glosas.:

dani.ella disse...

esse vai pro seu futuro livro, né?!


tão bom!
=)

Vanessa Gomes disse...

É incrivel o teu poder descritivo. CARACA! Quando eu leio um texto desses largo tudo e fico cá, "estatalada" em frente ao PC.

Muito bom!

AndLogo disse...

Sem mais delongas, vc só queria dizer o quanto esse folder era ruim!rss

BOa forma de dizer.
vlw brother!

william gomes disse...

AndLogo,
Na verdade, as descrições são feitas para sentirmos distintas sensações ao decorrer do texto, coisas que vivemos e pouco notamos, mas quando estão em forma de palavras à frente dos nossos olhos, passamos a perceber o quão elas são intensas e que estão ali. É como se olhasse para si e percebesse como viveria aquilo, imaginando a si próprio - vendo a vida entrando em si. Não é a toa que o blog chama Si Sente [mesmo confuso ortograficamente]. A minha intenção é essa: tentar fazê-lo sentir algo em coisas que passam despercebidas aos olhos de quem anda cego. Ao menos tento.

william gomes disse...

Descrever é:

I. fazer viver os pormenores, situações ou pessoas;
II. evocar o que se vê, sente;
III. criar o que não se vê, mas se percebe ou imagina
IV. não copiar friamente, mas deixar rica, uma imagem
V. não enumerar muitos pormenores, mas transmitir sensações fortes.

Na descrição o ser e o ambiente são importantes. Assim, o substantivo e o adjetivo devem ser explorados para traduzirem com ênfase um impressão.

Fonte: http://www.algosobre.com.br/redacao/descricao.html

AndLogo disse...

Boa aula de como devo sentir e de como devo axar e viajar num texto ..

regras.
vlW!

Giuliano Marley disse...

Pensei que tinha bloqueado os comentários…


Agora não sinto mais vontade de glosar…

babi Barreto disse...

Wu....fiquei imaginando essa cena...engraçado descrever coisas assim tão simples.Vc se supera cada vez mais!