Aos poucos

Uma leve lembrança pousou na unha do meu polegar. Sabia que não era uma das minhas. Quando ia recordar essa lembrança alheia eu a soprei e percebi o quão longe se foi com um simples empurro aéreo. Talvez essa memória aeróbata fosse algum pensamento de uma mente cheia e pudesse ter saído de qualquer um dos buracos. Daqui, ainda posso vê-la pousada sobre o parapeito da janela. Tão concreta quanto leve. Movido contra minhas próprias vontades, esvaziei uma caixa de fósforo recém-comprada e a coloquei dentro antes que alguém pudesse lembrar. Era uma decisão difícil até o momento em que resolvi usá-la. No quarto, sentado na cama, janela fechada, abri a caixa de fósforo e senti a lembrança cair na minha mão direita como uma formiga. Estava imóvel. Aproximei minha mão do nariz e de olhos fechados a aspirei. Até hoje não consegui lembrá-la, mas volta e meia sempre vem algum momento inédito acompanhado de uma sensação vivida antes - alguns a chamam de “déjà vu”. Mas eu sei que cada sensação desta é um fragmento de uma memória alheia que te invade muitas vezes sem permissão.

4 glosas.:

Anônimo disse...

Muito, muito bom esse texto!

Às vezes aspiro minhas lembranças tbm. Mas elas vêm no momento mais inoportuno. Só não consigo soprar, como vc fez, elas se fixam e não se movem. Só tenho mesmo que esperar elas se apresentarem. Me diz o que vc faz com elas? Guarda depois novamente, ou deixa elas irem embora?

Saudade de tu, criatura!

O que você acha do Ednair? disse...

Ontem à noite, na hora de dormir, um pensamento que eu não queria invadiu-me. Corri dele que nem fugitiva e busquei lembrar qualquer coisa em minha memória: o encontro naquele dia lembra o cara que conheci que lembra o tal lugar que lembra aquilo outro...
E assim fugi de não sei mais nem o quê.
rs

Beijo

dani.ella disse...

memórias são intrusas, né?! nos invadem assim, sem pedir permissão. podem ser nossas ou não.
mas quando são boas, bem que a gente gosta

=)

binhobrill disse...

O dejá vu é uma "brecha". Isso tem me perseguido há muito, ou já me perseguia e eu, distraído, não via?

És muito bom com as palavras, amigo!
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