Herança

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Maldito ócio juvenil. Por causa dele minhas ações e pensamentos são denominados senis. Loucos são eles. Que estão tão ávidos de prazer que mal querem sequer enxergar uma isca da realidade crua e insensível que só a razão deposita em si própria. Devido a certas atitudes desprovidas de um sentido que me recuso a aceitar, tive que tapar todas as janelas com pedaços de madeira para que as pedras lançadas contra mim e meus, silenciosos e confidentes, pertences. O que me dói é saber que esse meu escudo, também não passa de uma barreira contra a luz daí. Agora só tenho um filete de luz para me indicar o quanto a casa está empoeirada. O quanto aquelas minúsculas partículas de lembranças se agitam quando passo por perto. Aí está uma íntima dúvida fútil: essas pequenas partículas estão se livrando dessa casa ou são invasoras passivas fadadas a adentrar em qualquer cômodo onde haja pouca vida e mudança? Desconheço. Assim como esses macacos juvenis que agitam a rua com xingamentos que comprometem a minha sanidade mental. “Eu não sou louca.” Esse é o meu diálogo diário ante o espelho mal iluminado ao nascer do dia. Meu gato sabe disso. Meus cabelos também. São eles os confidentes mais fiéis. Por isso não posso cortá-los. A memória é um luxo que me empobrece diariamente. Uma vez feito, não saberia recontar aos novos fios tudo já dito. Vou levá-los comigo até meu túmulo. E nem minha morte poderá interromper nossa relação, já que depois de mim eles continuarão vivos. Eles serão a linha que me manterá entre os dois mundos. Ou melhor, os fios. Pelo menos por um tempo, até virem ao meu encontro. Vou me aturando enquanto isso. Alimentando-me com o que encontro pelas minhas andanças noturnas. Que é quando a rua inteira pertence a mim, e eu a ela. Sinto certamente que o dia tem inveja da noite por não ter os protagonistas que só nela aparecem. Sente só, apesar do Sol. É durante o dia que as prostitutas dormem e apagam seu fogo; que os guardas são meros pais e mocinhos, não mais heróis; que as virgens interpretam; que os cachorros de rua perdem sua sedução; que as cantadas são propostas falidas; e que as poetas, claro, são doidas varridas. Mas há tempos que não brota poesia de minhas entranhas. Há quem diga que é por falta de amor. Iludidos. Eu admito com a pretensão que posso que meus poemas não eram insossos por falta disso. Eles tinham a maturidade precoce dos suicídios. Meus poemas não chegaram a ser lidos, nem livros.
Até evito.
Eis um requisito.
Quando esquematizados em capítulos,
São preciosos cálices bebidos
Subitamente digeridos
Distraídos.
E por isso, deixo-os comigo. Assim, os dou a real grandeza que merecem. Agora, já é tarde. Nem a idade, ou a vaidade, nem se quer a criatividade me permite prosseguir. Eu sei que há um tanto a refletir. Mais um dia a descobrir. Isso é, se o que revelará sobre a cama ao amanhecer não for um corpo torto e amorfo. Ô desgosto, não queria morrer assim. Pretendia ao menos ser vista no fim. Queria ter a surpresa de saber qual seria minha última palavra. Minha última lembrança. Enfim, queria que alguém visse minha desintegração. O colchão se enchendo novamente, com um peso agora mais leve, o da alma. A coberta numa tentativa vã de reaquecer um cadáver constituído de histórias, agora, em decomposição. As histórias, ou lembranças, ou insucessos, decompostos, tendem-se a serem atraídos por outro corpo continuador. A fim de, à base da reciclagem, acontecer. É pouco corpo para tudo virar fato. Minto: é pouco é tempo. O espelho, seu fiel valete, está ali cara a cara representando a inconstância do desalinho de seu senhor. Ê bicho danado, esse tempo! Nem mesmo o vento conseguiu tocar em sua vestimenta de acontecimentos. Uma das poucas coisas que sempre pedi para mim mesma, é que eu morra enquanto estiver chovendo. Assim, irei com calma. [Mas para onde?] Assim eu sentirei cada tanto de mim sendo diluído com o ar, num desarranjo instantâneo. Haverá milhões de micropartículas pairando pela casa com o intuito duma despedida despropositada. Apenas despedir do que construiu um dia. Como sempre, cada vez que os primeiros pingos caem no telhado, como agora, eu me recuso a morrer. E com autocontrariedade, decido nascer! Pretendo ficar aqui até acabar o mundo. Quanto à loucura? Deixarei de herança à mercê daqueles que não se permitem imaginar.

Bordejo

hoje você esteve aqui, mudou tudo de lugar e acabamento
como um inquilo de uma casa abandonada

assumiu novas utilidades a velhos sentimentos

de um cômodo pequeno e oco fez seu porão de desejos

de uma vasta varanda sua biblioteca de segredos

quando libertos, se misturam na composição de bordejos.